"Em ciência, o crédito vai para o homem que convence o mundo
de uma idéia, não para aquele que a teve primeiro."
William Osler
Este é, provavelmente, um dos primeiros registros de morte anafilática, provavelmente por choque, causada por picada de inseto e descrita em hieróglifos. Uma tradução do hieróglifo é: "O destino perfurou, por meio de uma vespa, o Rei das Duas Coroas de Manshu (Menes). Este mural com texto esculpido em madeira é dedicado à sua memória." A ilustração e a tradução são retiradas de: Wanddel LA: Egyptian Civilization: Its Sumerian Origin and Real Chronology and Sumerian Origin of Egyptian Hieroglyphs. London, Luzac and Co., 1930.
"Saúde estado de completo bem-estar físico, mental e social,
e não apenas a ausência de doença ou enfermidade." Organização Mundial Saúde
A melhor definição de saúde pública não se restringe ao que é descrito segundo a legislação, ou ao que deveria ser.
As melhores definições são as realidades que se apresentam para serem modificadas pelo ser humano.
E, as realidades são melhores apresentadas pelos artistas que com seu modo peculiar de apresentar o sofrimento tornam tal visão suportável.
Se eu fosse definir saúde pública no Brasil hoje, usaria o texto de Fernando Bonassi datado de 16/12/2001, retirado da Folha de São Paulo; Entitulado: "Estilhaços de São Paulo" é um fragmento da peça "Megalópole, transcrito abaixo:
“Ecos de sirenes. Vozes de prisão. Crianças chorando abertamente. Homens feitos chorando escondidos. Gatos com ratos mortos na boca. Ratos mortos com formigas na boca. Talheres raspando pratos. Camas suspensas por latas de óleo. Rostos em terror espiando nos vitrôs. Dez milhões de preces inomináveis pra dentro dos travesseiros. Cristos de louça. Tecnologia informática e toalhas plásticas. Fábricas extáticas. Placas vazias de necessidade. Sapatos pras melhores cerimônias ralados nas calçadas mais distantes. Velas derretidas sobre pedidos mínimos. Dragões espetados na barriga. Cravos e espinhas. Palavrões. Pombas espantadas. Gatos afogados. Telefonemas. Copos quebrando-se. Filmes pras mulheres infelizes suspirarem. Vento encanado. Almas penadas. Chaveiros apanhados de surpresa. Chuveiro ligado sem parar. Espuma despencando nos ralos. Compressão em colchões de mola. Lençóis friccionados. Corpos friccionados. Arame farpado. Tiros. Facadas. Vidros e ossos partidos. Multas. Dúvidas. Dívidas. Afagos. Comemorações. Tesouradas. Uma porta que se abre. Uma mala que se fecha. Pontos sensíveis cutucados com gosto. Dinheiro lançado da janela de um carro. Saltos salpicados nas escadas. Rugas e cicatrizes. Injeções de ânimo. Comprimidos calmantes. Copos de veneno. Uma espera aflita. Um querer que se foda. Um tênis novinho na sarjeta. Tatuagens explicativas. Profissões de fé. Corações de plástico. Armas de brinquedo. Balas de verdade. Um sonho de padaria. Contas. Mensagens cifradas. Promessas inadiáveis. Atropelamentos definitivos. Conversas importantes. Correntes e cadeados. A burrice multinacional dos televisores. A espada curva dos meninos. A gaveta aveludada das meninas. Guarda roupas. Armários. Arquivos mortos. Pastas sanfona. Uma elite suicida filmada com câmeras escondidas. Rádios de pilha. Pilhas de rádios. Elevadores. Furadeiras de impacto. Batedeiras de bolo. Picaretas. Liquidificadores. Aspiradores. Enceradeiras. Escarradeiras. Seringas hipodérmicas. Preservativos. Cascas de ovos. Miolos de pão. Tomates pisados. Machadadas. O descascar da laranjas mais azedas. O tilintar das moedas mais queridas. O farfalhar dos helicópteros. Rumores de fusíveis. Botões esmagados à tapa. Portas rasgadas à socos. Portões automáticos. Guilhotinas de papel. Enxurradas. Bijuterias chacoalhadas. Lâmpadas cozinhando. Relógios apitando. O batom e os lábios. A gilete e a barba. A taça e o vinho. A serra e o pão. Ferros e fios elétricos. CDs chocando-se. Antenas espevitadas. Papagaios castrados. Descargas privadas. Brigas públicas. Orações entredentes. Plantas secas de arrepiar. Sapatos chutados. Chinelos partidos. Coleiras de cachorro. O chiado das cafeteiras e dos púberes. Panelas de pressão. O rachar dos santos de gêsso. O estalo das bicicletas abandonadas. Pernas batidas. Gavetas empurradas. Cintos puxados. Isqueiros ralados. Tacos soltos. Pecados mortais. Calendários soprados. Lápis esculpidos à dentadas. Incestos. Sorrisos blindados. Bilhetes colados. Espelhos suados. Sinais da cruz. Pó de vidro semeado no carpete de pêlo duro. Insetos pousando em pantufas. Talheres fora de hora. Tosse comprida. Livros jogados. Bombinhas de asma. Gases inflamáveis. Anéis de brilhante. Gasolina adulterada. Respiração entredentes. Granizo nas persianas. Documentos e certidões fritando nos fundos das calças. Grampeadores oprimidos. Orgasmos. Grasnados. Latidos. Beijos ruidosos. Alianças ruinosas. Divórcios espetaculares. Caminhões de mudança. Casas de massagem. Sanduíches/refrigerantes. Resultados de exames dormindo em gavetas ardidas. Molhos de chaves. Uma poltrona que passa boiando. Cadáveres esquisitos. Promessas e frituras. Holleriths esfregados. Monumentos esverdeados. Um homem sobrevivendo aos ferros de seu carro. Alguém implorando pra que Iahweh dê as caras. Sirenes, alarmes, buzinas, pios, uniformes, fuzis de repetição, hierarquias, urina, impostos, eletrochoque, virgindade, retenção anal e esperança. Todos essas casas de família de luzes acesas na escuridão cariada dos prédios... nem tudo é sonho ou pesadelo.”
A melhor definição de saúde pública não se restringe a legislação, ou ao que deveria ser o serviço saúde.
O conceito de saúde no Brasil não deve se restringir ao ideal, mas deve ser pensada a partir do que a saúde é atualmente, porque é essa realidade que mostra a falta de saúde com que a população tem que lidar. Uma falta que tentamos preencher com palavras e conceitos, para fugir do enfrentamento.
Análogo ao texto, a saúde no Brasil não é o sonho que a tecnologia propõe, nem o pesadelo da falta de acesso para todos, porque quem vê pacientes em corredores de hospitais públicos sabe que o acesso não é igualitário ou mesmo equitário. Mas é algo desigual, injusto e fragmentado.
A saúde é esse estilhaço de uma sociedade fragmentada em classes, uma sociedade que foi quebrada pela ganância humana que faz com o Brasil seja uma nação rica de povo pobre.
"Se queremos progredir não devemos repetir a história, mas fazer uma nova história." Gandhi
Alguem diz: -"Eu tenho uma dor." . 2000 a.C. - Aqui, coma essas raízes. . 1000 d.C. - Raízes são pagãs, reze. . 1850 d.C. - Rezas são superstição, beba essa poção. . 1940 d.C. - Essa poção é óleo de cobra, tome essa pílula. . 1985 d.C. - Essa pílula é placebo, tome esse antibiótico. . 2000 d.C. - Antibiótico é artificial, coma essa raiz.
A maioria de nós possui marchas que nunca utiliza."
Perguntas elaboradas pela turma CD após a leitura do texto “O outro da Anatomia”:
11. O grupo gostou de suas citações sobre o cadáver e principalmente do final quando você fala sobre a música. Mas não entendemos como conceitos como cultura, arte e beleza que variam tanto podem ajudar uma pessoa a "superar a dor e lidar com as limitações, com a finitude".
11. Considero sempre útil saber o que mais atinge o leitor de forma a acioná-lo de maneira mais eficaz, agradeço as considerações.
Alguns conceitos mesmo que mutáveis servem para indicarem diretrizes a serem contempladas. Independente da cultura que tenha sido introjetada, da arte que o sujeito prefira admirar, ou ainda apesar do fator que desperte o sentimento de belo em determinada mente, todas as pessoas de alguma forma tem contato com essas experiências e todas são formas de expressar o que se abstraiu de uma vivência, e, é exatamente essa expressão que torna possível lidar com a finitude fazendo a transformação da mesma, fazendo-a existir intensa, mas sob outra circunstância, essa mudança de olhar de posicionamento é algo incrivelmente terapêutico.
12. Você é muito categórica ao falar de conceitos como grade curricular, família e valores. Isso já deveria vir com os alunos, não acha que é algo que deveria ser aprendido em casa?
12. Muitos dos meus colegas são contrários à existência de disciplinas humanísticas no curriculum alegando que quem é humano já o aprendeu na infância e que o sujeito desumano e cruel com um pragmatismo exacerbado não se tornará humano devido a uma disciplina cursada na universidade.
Consideram esse aprendizado uma utopia e uma perda de tempo.
Para essas pessoas eu apenas cito as palavras do meu muito querido professor de técnica cirúrgica, Dr. Colares: “Não importa se os alunos chegam aqui sabendo costurar ou sem conhecer uma agulha, a minha função é fornecer para todos os subsídios para que saiam daqui sabendo fazer o que deve ser feito. Não importo como os alunos chegam, eu tenho responsabilidade sobre como eles sairão, e eles sairão quando souberem”.
13. Você fala como se a peça anatômica fosse a pessoa, não considera que existem diferenças entre eles?
13. Decerto que existem diferenças eu as considero e reconheço. Mas o texto se baseia em uma analogia, da parte para o todo. É lógico que a linguagem tenta, mas nem sempre consegue transmitir tudo o que eu desejo falar ao escrever, por isso é fundamental debates, para explicitar, para amadurecer.
A pessoa é o outro e o corpo é uma parte do outro. A peça anatômica é o corpo inerte, então é uma relação de conjunto do tipo o corpo está contido no outro.
14. Você executa na sua vida tudo o que você propõe? O tempo todo você se refere aos itens no texto como se não pertencesse a essa realidade que observa.
14. A resposta parece óbvia, lógico que não executo tudo o que proponho, mas eu tento executar sempre o mais próximo do ideal que consigo. Sou insuficiente como todo e qualquer ser humano, mas eu tento e busco lidar com essas insuficiências, supera-las na medida do possível.
O texto é escrito de modo dissertativo. E procuro sempre evitar expor as minhas opiniões que são bem mais rígidas que as que expressas. Busco uma “pessoa impessoal” avaliando a situação e não colocando opiniões e considerações particulares com o objetivo de tornar as idéias ali defendidas mais universalistas e atemporais para que o texto possa ser útil por mais tempo.
Por mais impessoal que tente ser o texto defende um posicionamento, portanto, sei que a impessoalidade é sempre uma tentativa uma vez que nunca é atingida em absoluto.
15. Será que você acha que o ensino de disciplinas como a cirurgia deveria vir antes da anatomia para que o paciente vivo fosse conhecido antes do cadáver?
15. Eu acho que a forma com que as disciplinas estão dispostas na temporalidade do curriculum está correta, não creio que se faça necessário mudar essa seqüência.
Se existe uma mudança a ser feita é fazer a junção dos quesitos humanísticos que foram incorporados desde a reforma curricular. Porque cada instituição se adaptou a essas disciplinas de uma forma, pois existem diretrizes de grade curricular e não uma grade curricular obrigatória pronta e fechada.
Existe uma carga horária a ser oferecida para essas disciplinas, mas a mesma é tão diluída no decorrer do curso que acaba por perder a importância mediante a visão do aluno uma vez que o mesmo passa a se dedicar as disciplinas de maior teor técnico como anatomia, patologia, semiologia, fisiologia e assim por diante.
Essa diluição faz com que muitos se refiram a essas disciplinas como “as disciplinas inúteis” ou “matérias sem importância” ou pior “matérias pra encher grade”.
Essa descrença nesse ensino e a forma tão maleável na aplicação de suas avaliações que quase sempre são em grupo, de consulta ou em forma de trabalhos acabam por denegrir quando deveriam defender.
Esses métodos permitem que muitos não cumpram sequer suas responsabilidades para com essas matérias e que outros fiquem sobrecarregados realizando as atividades propostas sozinhos.
Isso culmina em um “não saber” por parte do que “folga nas costas” do colega sendo carregado, mágoa por parte daquele que carrega para evitar uma relação constrangedora com aquele que não deseja realizar a atividade, omissão por parte do professor que deveria averiguar o aprendizado. Em resumo: um desastre que já é comum.
16. Diante da crítica a grade curricular o que você sugere de medidas para mudar essa realidade?
16. A mudança que me refiro é sempre na postura, na forma de aplicação e não na carga horária e grade propriamente dita. A mudança humana se faz necessária. As regras foram bem escritas, mas são aplicadas de modo insuficiente, esse é o cerne da questão.
17. Qual o grau de envolvimento que o médico deve estabelecer com o seu paciente?
17.Deve ser o suficiente pra entender e respeitar o paciente e procurar ajudá-lo.
Esse grau é bem descrito no livro Bates “Propedêutica Médica”, que sugere e indica como deve ser realizada uma resposta empática.
Essa resposta profissional acolhe mantendo o limite profissional e varia de acordo com a situação o interessante é realmente fazer a leitura dos primeiros capítulos do livro, pois essas técnicas são mais aprendidas via exemplo e o livro está recheado de exemplos.
18. Você diz que o aluno foge da morte na forma de tratar a peça. Você acha normal se ver no morto?
18. Não é ver-se no morto efetivamente, imaginar-se no lugar dele ou algo semelhante, isso seria certamente um indicativo de doença psiquiátrica a ser avaliada, considero que tal comportamento tende a fugir do padrão de normalidade.
Quando me refiro a ver-se no morto quero dizer que, quando deparamos com a morte acionamos todas as lembranças de perda que temos na memória e tentamos lidar com isso a partir do que foi previamente aprendido.
Todos nós já perdemos ou nos despedimos de algo ou alguém que amávamos muito, e lidar com essa falta não é situação fácil, porque estamos sujeitos a sentimentos de saudade, de abandono, dentre outros.
Todos nós já superamos algum tipo de perda, mas isso é sempre difícil de lidar, porque o nosso inconsciente não concebe a perda, concebe sim a transformação. Não temos estruturas psíquicas preparadas para lidarem com a negação e temos que nos adaptar quando encontramos a negação.
Uma negação encarada literalmente, como é o caso da morte na figura do morto, remete a todas as perdas e a forma de modular os sentimentos que se aliam a perda.
E quando eu digo que a primeira reação normal seria a de fuga me refiro exatamente a um fugir, mas como não se pode fugir para sempre, nem sempre a alternativa mais fácil é a possível, faz-se preciso desenvolver recursos para enfrentar a situação de perda.
19. Não existe como conhecer a morte, porque nenhum de nós aqui morreu. Como podemos ver o nosso fim no cadáver?
Antes de responder a essa pergunta precisamos fazer uma análise quantitativa. Existe o absoluto que compreende o todo, ou seja, todos os elementos de um conjunto. Nesse sentido nenhum de nós aqui morreu, por que o morrer em absoluto é morrer mesmo, literalmente, se refere à morte que permite ao corpo ter um atestado de óbito.
Mas também existe o de certo modo, que é morrer nas partes.
Existe uma bela poesia de um poeta nordestino do qual não me recordo o nome em que ele faz alusão a esse tipo de morte. Morrer em partes, em pequenas perdas, nessa poesia ele diz que quando a morte veio buscá-lo não existia nada mais para morrer, porque ele já havia morrido um pouco em cada uma de suas perdas.
De forma que a morte em absoluto nada significava mediante ao tamanho de suas mortes parciais, pois as mesmas eram muito significativas.
Todos nós já morremos e continuamos a morrer todos os dias se avaliarmos no âmbito celular, assim como nossa fisionomia de criança morreu no tempo.
O envelhecer é um morrer, e no final o que chamamos de morte é o fim do morrer. No aspecto parcial a vida é permeada de mortes, e então podemos entender a morte em absoluto a partir da experiência que temos das inúmeras mortes “de certo modo” pelas quais passamos.
20. Frieza é diferente de indiferença, você acha que frieza diante da dor ajuda o médico a não sofrer com a situação vivida pelo paciente?
20. Aqui a definição do conceito se faz importante, não tem como se acolher alguém sem conhecer a sua dor, mesmo que de certo modo, mesmo sabendo cuidar da situação.
Frieza não seria o termo correto, mas sim a adequação profissional a uma situação, mantendo o equilíbrio emocional de forma a ajudar sem sofrer junto.
Creio que a leitura dos casos do livro Propedêutica médica elucide melhor essa questão do que qualquer longa resposta que eu venha a desenvolver.
21. Você acha que o simples fato de conhecer a morte torna alguém mais humano?
21. A maioria das pessoas crê que não, mas a minha resposta é sim.
Quando temos a consciência de que existe um fim, de que ele chegará somos obrigados a refletir sobre o que faremos com o tempo que nos resta.
O que faremos com o pouco tempo de existência e qual a importância de nossas ações daqui a um milhão de anos. E, com essas reflexões somos levados a dar valor ao que realmente confere sentido a uma vida, ajudar o próximo, fazer diferença na vida de alguém.
Quando percebemos a finitude procuramos nos firmar no que parece mais eterno e mais duradouro e muda-se o foco, preocupa-se menos com “picuinhas”, com coisas menores, porque as coisas passam a ter a devida proporção.
Creio que com a noção do tamanho da existência são acrescidas as noções do tamanho de muitos outros valores de nossa existência e que lidar com uma realidade em que conhecemos o tamanho, o peso a medida de cada item é lidar com a realidade de forma adulta e equilibrada.
22. Se a definição de saúde da OMS (Organização Mundial de Saúde) não parece ser suficiente, o que é saúde para você?
22. Considero a definição da OMS perfeita, o que indigna é a forma com as pessoas falam essa definição decorada sem refletir.
A definição de saúde deve ser algo para o entendimento, não mais um conceito decorado e repetido, porque essa repetição vai tornando esse conceito vazio.
Os profissionais de saúde deveriam refletir sobre esse conceito, sobre o que significa cada item, e a partir dessa reflexão admitir um conceito particular, para que as particularidades o ajudem a ter mais ânimo e esperança em relação ao próprio trabalho.