sábado, 10 de abril de 2010

Definição de Saúde Pública

"Saúde estado de completo bem-estar físico, mental e social,
e não apenas a ausência de doença ou enfermidade."
Organização Mundial Saúde


A melhor definição de saúde pública não se restringe ao que é descrito segundo a legislação, ou ao que deveria ser.

As melhores definições são as realidades que se apresentam para serem modificadas pelo ser humano.

E, as realidades são melhores apresentadas pelos artistas que com seu modo peculiar de apresentar o sofrimento tornam tal visão suportável.

Se eu fosse definir saúde pública no Brasil hoje, usaria o texto de Fernando Bonassi datado de 16/12/2001, retirado da Folha de São Paulo; Entitulado: "Estilhaços de São Paulo" é um fragmento da peça "Megalópole, transcrito abaixo:

“Ecos de sirenes. Vozes de prisão. Crianças chorando abertamente. Homens feitos chorando escondidos. Gatos com ratos mortos na boca. Ratos mortos com formigas na boca. Talheres raspando pratos. Camas suspensas por latas de óleo. Rostos em terror espiando nos vitrôs. Dez milhões de preces inomináveis pra dentro dos travesseiros. Cristos de louça. Tecnologia informática e toalhas plásticas. Fábricas extáticas. Placas vazias de necessidade. Sapatos pras melhores cerimônias ralados nas calçadas mais distantes. Velas derretidas sobre pedidos mínimos. Dragões espetados na barriga. Cravos e espinhas. Palavrões. Pombas espantadas. Gatos afogados. Telefonemas. Copos quebrando-se. Filmes pras mulheres infelizes suspirarem. Vento encanado. Almas penadas. Chaveiros apanhados de surpresa. Chuveiro ligado sem parar. Espuma despencando nos ralos. Compressão em colchões de mola. Lençóis friccionados. Corpos friccionados. Arame farpado. Tiros. Facadas. Vidros e ossos partidos. Multas. Dúvidas. Dívidas. Afagos. Comemorações. Tesouradas. Uma porta que se abre. Uma mala que se fecha. Pontos sensíveis cutucados com gosto. Dinheiro lançado da janela de um carro. Saltos salpicados nas escadas. Rugas e cicatrizes. Injeções de ânimo. Comprimidos calmantes. Copos de veneno. Uma espera aflita. Um querer que se foda. Um tênis novinho na sarjeta. Tatuagens explicativas. Profissões de fé. Corações de plástico. Armas de brinquedo. Balas de verdade. Um sonho de padaria. Contas. Mensagens cifradas. Promessas inadiáveis. Atropelamentos definitivos. Conversas importantes. Correntes e cadeados. A burrice multinacional dos televisores. A espada curva dos meninos. A gaveta aveludada das meninas. Guarda roupas. Armários. Arquivos mortos. Pastas sanfona. Uma elite suicida filmada com câmeras escondidas. Rádios de pilha. Pilhas de rádios. Elevadores. Furadeiras de impacto. Batedeiras de bolo. Picaretas. Liquidificadores. Aspiradores. Enceradeiras. Escarradeiras. Seringas hipodérmicas. Preservativos. Cascas de ovos. Miolos de pão. Tomates pisados. Machadadas. O descascar da laranjas mais azedas. O tilintar das moedas mais queridas. O farfalhar dos helicópteros. Rumores de fusíveis. Botões esmagados à tapa. Portas rasgadas à socos. Portões automáticos. Guilhotinas de papel. Enxurradas. Bijuterias chacoalhadas. Lâmpadas cozinhando. Relógios apitando. O batom e os lábios. A gilete e a barba. A taça e o vinho. A serra e o pão. Ferros e fios elétricos. CDs chocando-se. Antenas espevitadas. Papagaios castrados. Descargas privadas. Brigas públicas. Orações entredentes. Plantas secas de arrepiar. Sapatos chutados. Chinelos partidos. Coleiras de cachorro. O chiado das cafeteiras e dos púberes. Panelas de pressão. O rachar dos santos de gêsso. O estalo das bicicletas abandonadas. Pernas batidas. Gavetas empurradas. Cintos puxados. Isqueiros ralados. Tacos soltos. Pecados mortais. Calendários soprados. Lápis esculpidos à dentadas. Incestos. Sorrisos blindados. Bilhetes colados. Espelhos suados. Sinais da cruz. Pó de vidro semeado no carpete de pêlo duro. Insetos pousando em pantufas. Talheres fora de hora. Tosse comprida. Livros jogados. Bombinhas de asma. Gases inflamáveis. Anéis de brilhante. Gasolina adulterada. Respiração entredentes. Granizo nas persianas. Documentos e certidões fritando nos fundos das calças. Grampeadores oprimidos. Orgasmos. Grasnados. Latidos. Beijos ruidosos. Alianças ruinosas. Divórcios espetaculares. Caminhões de mudança. Casas de massagem. Sanduíches/refrigerantes. Resultados de exames dormindo em gavetas ardidas. Molhos de chaves. Uma poltrona que passa boiando. Cadáveres esquisitos. Promessas e frituras. Holleriths esfregados. Monumentos esverdeados. Um homem sobrevivendo aos ferros de seu carro. Alguém implorando pra que Iahweh dê as caras. Sirenes, alarmes, buzinas, pios, uniformes, fuzis de repetição, hierarquias, urina, impostos, eletrochoque, virgindade, retenção anal e esperança. Todos essas casas de família de luzes acesas na escuridão cariada dos prédios... nem tudo é sonho ou pesadelo.”

A melhor definição de saúde pública não se restringe a legislação, ou ao que deveria ser o serviço saúde.

O conceito de saúde no Brasil não deve se restringir ao ideal, mas deve ser pensada a partir do que a saúde é atualmente, porque é essa realidade que mostra a falta de saúde com que a população tem que lidar. Uma falta que tentamos preencher com palavras e conceitos, para fugir do enfrentamento.

Análogo ao texto, a saúde no Brasil não é o sonho que a tecnologia propõe, nem o pesadelo da falta de acesso para todos, porque quem vê pacientes em corredores de hospitais públicos sabe que o acesso não é igualitário ou mesmo equitário. Mas é algo desigual, injusto e fragmentado.

A saúde é esse estilhaço de uma sociedade fragmentada em classes, uma sociedade que foi quebrada pela ganância humana que faz com o Brasil seja uma nação rica de povo pobre.







2 comentários:

  1. Dra. Mayra, qual o texto para português, do primeiro ano? guilhermedicin@hotmail.com

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  2. Prezado Guilherme,
    o texto é: "O outro da anatomia"
    A página é:
    http://mayralopes.blogspot.com/2009/02/o-outro-da-anatomia.html
    Qualquer dúvida, é só postar.
    Um abraço

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