segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Particular

“É só mistério, não tem segredo/ Vem cá, não tenha medo
A água é potável/ Daqui você pode beber
Só não se perca ao entrar/ No meu infinito particular”
Arnaldo Antunes



Em metafísica, um particular é um ente distinto de um universal. Segundo o dicionário a palavra pode assumir diversas conotações, sendoabgesondertbesondereinzelngemütlichinnigintimprivatseperatspezialspeziellvertraulichvertrautapartcloseintimateparticularprivateseparatespecialpeculiarintimeparticulierspécial: pessoal ou mesmo indicando o descours particuliersque não é comum (especial). A expressão ‘eparticulieruncasparticulierm particular’ pode significar ‘especialmente’ ou ainda ‘en particulierIl aimela littératureeten particulierlapoésieà parte’., , , , , , , , , , , , , , , , , , , , /-ière e , , .

Recordo-me de certa vez escrever um email para um amigo que fez questão de comentar acerca do título do email que era “particular para o X”. Ele escreveu longamente acerca do título defendendo que o email era particular para ele sim, principalmente por estar em uma caixa de email, algo incrivelmente particular cuja senha somente ele possuía.

No meu email possuo uma pasta cujo título é “particular”, não posso ter alguém ao lado enquanto abro os emails, pois não há quem agüente vê-la sem um comentário do tipo: “o que tem nessa pasta”, ou ainda para os mais bem humorados “que louca uma pasta particular dentro do email” ou ainda “um dia você me deixa abrir?” culminando em um “que estranho!”.

Não sei por que o meu “particular” incomoda tanto, como diria Jubel: “a condição para que uma pessoa fale é ter alguém para escutar”.

Em verdade ninguém tem nada a esconder, talvez seja por isso que várias pessoas me permitam ter um acesso tão direto a seus mistérios, a momentos particulares: porque as escuto. Ouvir é para os ouvidos, escutar é sutileza da alma.

Se o acesso à história de alguém é permitido é para que se faça o bem a essa pessoa de alguma forma, não para dar palpites como se a vida alheia fosse uma espécie de “você decide”, isso é comportamento de gente desumana que por falta de sentido na própria vida tem que cutucar a vida alheia.

Lembro-me de um trecho, que li quando era ainda bem pequena, que comparava um segredo a um documento. Se alguém lhe pede que guarde um documento, você não o entrega a outro ou mostra a quem apareça, porque aquele material só serve ao dono, ou melhor, só deveria servir ao dono.

Esse trecho marcou-me de modo profundo, porque desde que me lembro sou discreta, comecei a pintar aos seis anos porque precisava interagir. Acho que ainda não aprendi, por esse motivo não sou exímia pintora. Não encontrei as pessoas capazes de guardar meus momentos sem usá-los como folhetim, como diversão.

Já terminei relacionamentos muito próximos pela cobrança de respostas verbais, recentemente quase discuti com um indelicado que repetia sucessivamente: “você está quieta”, “algum problema?”, “tá embotada”... Eu respondi: “não há nada, está tudo bem”. Mas a surdez imperava.

Por inúmeras vezes me pergunto o que querem essas pessoas ouvir para dar sossego?

Se soubesse falaria.

É tão difícil achar quem respeite o silêncio alheio, o particular alheio.

Sempre escrevi, minhas agendas tinham na primeira página: “particular da Mayra” e todos em casa respeitavam.

A história de uma pessoa é particular não é pública. Uma das frases de Nietzsche que mais gosto é: “Não gosto de quem em rouba a solidão sem me oferecer verdadeira companhia”. Não gosto de quem me rouba a privacidade sem me oferecer verdadeiro amor.

Alguns dias atrás um dos meus professores perguntou: “O que dói mais, examinar o corpo e tocar alguém ou fazer uma pergunta e conversar?”

A maioria achava que examinar é invasivo e perguntar nada invasivo. Acertaram o gabarito. Creio que sou a única a pensar diferente, minha alma é a parte mais frágil do meu ser.

Mas mesmo pensando diferente percebo o quanto é difícil para os estudantes de medicina perguntar acerca da vida sexual dos pacientes das mortes que ocorreram na família e certamente isso causa no mínimo desconforto no paciente. A meu ver adentrar lembranças, invadir passados, reavivar afetos é o que há de invasivo sobre a face da terra.

Fazendo o levantamento genético de um paciente vi suas lágrimas descerem quando se lembrou do irmão que falecera quando ele ainda tinha apenas nove anos. O fato me lembrou de que alguns acontecimentos doem e que as lembranças de tais acontecimentos não doem menos. Alguns fatos nunca deixam de acontecer em nossas almas, repetem-se em cada pequena falta diária, em cada pequena dor.

Qualquer animal ouve, mas só os humanos escutam. Escutar é ser capaz de perceber o sentimento do outro, a existência do outro que é distinta da nossa.

Não julgar é escutar quando preciso, respeitando os muitos silêncios. Os silêncios podem ser do tamanho de dores inenarráveis, dores as quais a linguagem não consegue alcançar com seus símbolos, com seus sons, com palavras.

Palavras não conseguem definir a importância do “particular” e conhecê-lo por palavras é ainda não conhecê-lo.

Particular pode ser só um título, só uma pasta de email, pode ser um lugar para memórias importantes ou ainda para memórias corriqueiras que não se tem onde guardar e que por algum motivo que não se sabe não há como abandonar.

Agora eu defino o particular como um lugar a ser respeitado. O silêncio também é algo a ser escutado, percebido, analisado.

Mesmo quando se fala muito, fala-se pouco, porque quem muito fala “dá bom dia à cavalo”, quem muito fala esconde-se atrás das palavras vazias só pra conseguir o direito a um momento de silêncio, a um minuto “particular”.

Como cantou Gonzaguinha:

“Palavras, palavras, palavras
Desde quando sorrir é ser feliz?

Cantar nunca foi só de alegria
Com tempo ruim
Todo mundo também dá bom dia!”



2 comentários:

  1. Uau!

    Quando aprendemos a ouvir o que não é dito por palavras conhecemos do outro aquilo que às vezes nem ele percebe.
    Temos dois ouvidos e uma boca não é à toa!

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  2. Mayra! Muito bom o texto!
    Gostei!
    Continue assim sua "louca do bem"!
    Bjo!

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