domingo, 4 de setembro de 2011

Conto: A Gripe

"O difícil não é aprofundar na solidão;

É dela sair com a vida entre os dentes."

Anibal Machado


Ela abriu a caixa de correio eletrônico e lá estava:


“Respirar? Nem sei o que é isso... e parece brincadeira, pois só de não te ver mais eu já peguei um resfriado... os primeiros dias de abstinência estão me matando...”


Ela interrompeu a leitura e começou a devanear acerca do que lera: O resfriado é um estado gripal, que incide muito frequentemente quando há alterações imunológicas, com queda da capacidade de defesa do indivíduo.


A influenza ou gripe é uma doença infecciosa aguda de origem viral que acomete o trato respiratório e a cada inverno atinge mais de 100 milhões de pessoas.


O agente etiológico é o Myxovirus influenzae, ou vírus da gripe. Este subdivide-se nos tipos A, B e C, sendo que apenas os do tipo A e B apresentam relevância clínica em humanos.


O vírus influenza apresenta altas taxas de mutação, o que resulta freqüentemente na inserção de novas variantes virais na comunidade, para as quais a população não apresenta imunidade. São poucas as opções disponíveis para o controle da influenza.


Sim, talvez as palavras dele tivessem sentido, pois uma dos fatores causais e desencadeante de imunossupressão consiste em alterações emocionais, das quais o estresse é a mais freqüente, podendo existir outras.


Ela lembrou-se então do trecho intitulado 'A Lenda da Gripe', em que Aníbal Machado narra:


“Essa chuvinha fria, chuva abstrata, chuva de vazio que tanto cai no íntimo de nosso ser como nas ramificações mais distante; esse ressecamento moral, espasmo do espírito e ardor de mucosas; essa desmoralização súbita, vaia fininha de cruel e invisível platéia – quem disse que a gripe é doença?


Estado de alma, sim. Variação cíclica de nosso ser profundo numa febre de atividade que nada tem a ver com a que se inscreve nos termômetros.


Seu propósito evidente é a nossa reforma interior, tanto assim que manda logo a chuvinha, tão desagradável a principio, visando apenas ao nosso desmonte.


Tudo que é sujeira, ganga ou formação aluvionária vai-se desprendendo e caindo. São os trabalhos preliminares. Mesmo que depois disso o nosso diamante íntimo se recuse a fulgurar (e talvez não fulgure nunca!), pelo menos estamos limpos da ferrugem pessoal e prontas as nossas antenas à apreensão do que nos foge sempre em épocas habituais.


É nesse momento que um vulto costuma entrar com uma lâmpada que deixa colocada à nossa cabeceira. Ninguém se iluda: é o enviado da gripe, o cartógrafo! O mesmo que serviu à nossa infância nas diversas febres em que ela ardeu e progrediu em lucidez.


Esse cartógrafo, sempre rejuvenescido, inclina-se para nós e, à luz da lâmpada, desdobra o seu mapa mágico, com a presença real, posto que em miniatura, de uma porção de seres e coisas do Universo. E assim se deixam ver: na água, os peixes e navios; na terra, as árvores e cidades. E ainda se descobre nos horizontes contraídos em escala liliputiana o que fazem os homens e mulheres, o que dizem, o que cantam e brincam. Tal o poder da lâmpada.


Mesmo depois de ausentar-se, a gripe no-la confiar por algum tempo. E finalmente a retira. Quando não é a própria lâmpada que se apaga e desaparece, por incompatível com a luz prosaica.


Privados dela, chegamos à porta onde recebemos o primeiro choque: O mundo! O mesmo de sempre, ilustração pungente de um erro milenário... o mundo com suas ruas e veículos, as mesmas figuras repetindo hábitos e gestos, incapazes de se darem conta do que podem.


Nessa hora, ou a gente larga para sempre a casa e vai providenciar a transformação do mundo, o que não é obra de um homem só e convalescente; ou entra para reclamara a lâmpada a que se tem direito mediante a nova recaída.


Se, porem, a gripe volta sem a lâmpada e o cartógrafo, é porque a doença já foi revertida à rotina e vai prosseguir sem transcendência...”


A lenda a fazia lembrar que a doença infantiliza, retira a pessoa do mundo adulto, fragiliza sua vítima transformando-a em criança que precisa de cuidados, precisa do retorno da pessoa amada.


Ela voltou a se encantar com o autor do recado, sua gripe era transcendental, com direito a lâmpada e cartógrafo.


Ela, porém apesar de sua face jovial, já perdera a lâmpada e o cartógrafo havia muito tempo. Há pouco tempo atrás tivera uma pneumonia e continuou a trabalhar como se a dor fosse apenas mais uma parte do corpo.


Pensou em responder ao email, mas logo desistiu e o apagou, pensando: “As gripes e as paixões costumam atingir a cura em sete dias com ou sem uso de medicação sintomática.”


O leitor pode se perguntar: Mas e a ‘Gripe Espanhola’?


Esse tipo de gripe é tão rara quanto o amor, se rompe a chama não há mais remédio.


Se fosse esse o caso, ele estaria condenado.

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