"Jeca Tatu não é assim, ele está assim".
Monteiro Lobato
Monteiro Lobato, na obra intitulada “Urupês” dedica-se a descrição do tipo brasileiro conhecido popularmente como “Jeca Tatu” explicitando que independente da profissão o brasileiro aprendeu a ser “jeca”, e, diferente dos romances anteriormente escritos critica esse “caso tipo” mostrando como sua inocência é um mito. Denuncia que a imagem de inocente só busca esconder a realidade que segundo o autor consiste em um supremo comodismo que é sustentado por uma “filosofia do menor esforço” e de uma adaptação a praticamente todas as circunstâncias mediante as quais o mesmo deveria lutar por modificar.
Cita inúmeros exemplos que denotam a complacência e a falta de vontade do “Jeca” frente as mais diferentes circunstâncias da vida e culmina a exemplificação por intermédio de analogias do cotidiano do personagem.
Na analogia ao “banco com três pernas”, o autor mostra que o conformismo é mais fácil do que fazer algo para mudar, e a atitude conformista sempre é o posicionamento do “jeca”. Na visão do “Jeca” colocar uma quarta perna no banco é uma inutilidade, pois o banco só precisa de três pernas para cumprir sua função e colocar a quarta o obrigaria a nivelar todo o piso, lembra que pode se sentar sobre os calcanhares e culmina: “Seus remotos avós não gozavam maiores quantidades. Seus netos não meterão a quarta perna ao banco. Para quê? Vive-se bem sem isso.”
Termina descrevendo as condições precárias de moradia e eleva o comodismo ao absurdo ao elucidar o posicionamento do sujeito mediante tal circunstância: “Remendo (...) Para quê? Se uma casa dura dez anos e faltam ‘apenas’ nove para que ele abandone aquela? Essa filosofia economiza reparos.”
O sarcasmo ao lidar com o tipo “Jeca” torna o texto espirituoso porque descrito assim de forma tão aproximada o autor faz o tal “Jeca Tatu” parecer ridículo e leva o leitor a pensar em temas políticos, no conformismo humano mundial. Mas, mais que um convite a divagações de ordem política mundial o texto é universal e atemporal por descrever um comodismo que existe diariamente e atinge todos os âmbitos da sociedade.
É comum que os textos que tratem da temática saúde venham a criticar a postura “Jeca Tatu” por parte dos médicos que aceitam e se sujeitam às circunstâncias propostas pela institucionalização do serviço saúde, trabalhando sem “condições de trabalho” dignas.
Talvez uma análise mais aprofundada pudesse considerar “Jeca Tatu” o “residente” (profissional que se especializa) que se sujeita a uma competição desumana por vagas em serviços de referencia ou ainda a uma exploração do trabalho do “residente” que é por vezes abandonado sem um preceptor que o ensine.
Mas as temáticas acima são abordadas pelos conselhos, pela população e pela política nacional de uma forma mais ampla.
A temática abordada com menor importância é a da formação do médico ainda na graduação. Existe uma abertura indiscriminada de cursos de medicina, como se a quantidade de médicos despejada no mercado fosse suprir a falta de qualidade.
E, pouco se discute sobre a qualidade, porque quando se discute, quando se vislumbra um banco com três pernas e têm-se alma, sangue correndo nas veias, anseia-se por meter a quarta perna no banco.
Para fugir de uma atitude digna os responsáveis decidem instalar uma prova para permitir que o médico clinique e que tenha registro no conselho federal.
Ora, todos os posicionamentos tangenciam a questão central, pois existem cursinhos especializados em treinar alunos para serem aprovados na prova de residência e logo surgirão os especializados na prova para obtenção de título de graduação caso o mesmo venha a ser instituído.
A questão está para além do fato da instituição formadora fornecer ou não padrão mínimo para uma boa graduação: sequer pode-se medir tal variável. Simplesmente porque no ínterim da graduação existem métodos ilícitos para que o acadêmico consiga ser aprovado nas disciplinas curriculares.
Popularmente tais métodos são conhecidos pelo termo “cola”. Em pergunta realizada a mais de trezentos acadêmicos de medicina, oriundos de instituições brasileiras federais, estaduais e particulares, realizadas por intermédio do msn a resposta foi unânime: todos usam ou já usaram métodos ilícitos durante avaliação na graduação.
Mas nenhum deles aceitaria participar de uma pesquisa científica sobre o fato, por não confiarem na existência de um sigilo e por temerem retaliações por parte das instituições de ensino as quais estão vinculados.
Todos afirmaram que em uma pesquisa que abordasse tal tema responderiam com negativa por saberem das implicações legais acerca desses métodos.
O mais interessante é que esses graduandos defendem tais métodos por considerar que a cobrança a que são submetidos absurda. Mas completam que não realizaram reclamações de forma individualizada por temer o estigma de incompetentes. Praticamente 98% dos abordados tem verdadeiro pavor desse estigma.
As queixas são inúmeras nos diálogos e vão desde professores salientes, até o fato de que a memória humana não consegue reter tanta informação quanto é cobrado.
O resultado de tais implicações pode ser visto no número crescente de processos relacionados a erro médico e principalmente na insatisfação da população com o atendimento prestado. A insatisfação da população é crescente com o atendimento clínico com o tratamento pouco cordial que recebe e não apenas no que se refere aos recursos do setor saúde.
Professores, familiares e alunos acreditam ser normais atitudes de pouco comprometimento, brincadeiras na graduação, métodos ilícitos para a aprovação; Raramente consideram o fato de que a graduação é formadora de personalidades e de valores éticos.
Existe uma espécie de crendice de que o médico é um profissional com ares divinos quase que investido e outorgado por uma força maior para curar. Não questiono tal perspectiva, mas longas horas de estudo, empenho e comprometimento são essenciais à formação profissional.
O grande ponto da questão consiste no fato de que não existem culpados de forma direta para a situação alarmante. Não basta dizer que existem médicos dando aula e que não existe um direcionamento específico para a formação dos professores de medicina.
Não basta culpar os alunos por “colarem” nas avaliações defendendo que dessa forma não há como saber o quão absurdo tem sido o critério de avaliação a que são submetidos.
Não basta culpar o professor pelo terrorismo e humilhação a que submete o acadêmico.
A situação assemelha-se a um emaranhado sem ponta para desatar tantas variáveis absurdas.
A verdade é tão assustadora que se parece folclore. Os casos relatados chegam a ser inacreditáveis como o caso dos alunos que colaram e tiveram notas diferentes e nunca puderam ver suas avaliações.
Ou ainda o dos alunos que só estudam por xérox de provas anteriores, pois os professores não mudam a cobrança, não valorizam o que é digno. Não há estímulo concreto para estudar por livros. O abuso de poder por parte dos professores é queixa freqüente.
Um dos marcantes consiste no do professor que após aplicar a prova iniciou sua correção diante da classe, após corrigir a primeira somou as notas e percebeu que a nota seria 9.5 em 10. Achando absurdo nota tão alta foi conferir quem havia se saído tão bem na avaliação e se assustou em constatar que havia corrigido o gabarito. Nem o seu gabarito teve dez.
Outro professor muito temido, após correção da prova lia os erros para a sala e ria de quem os havia escrito em publico, nomeando os alunos que seguravam as lágrimas para derramá-las frente ao computador, no msn.
Esses são ainda professores que compareciam as aulas, porque os grandes catedráticos e chefes de cadeira de disciplinas tiveram como queixa a ausência, sendo as aulas ministradas pelos professores adjuntos.
Há ainda um relato de um trabalho em que os grupos de uma classe compraram a apresentação a ser feita, exceto um grupo que decidiu por fazer o trabalho de forma correta. Devido à compra todos os demais grupos tiveram trabalhos iguais, e para espanto geral o grupo que fez obteve a mesma nota dos demais que compraram. Existem muitas formas de ridicularizar algo, mas a injustiça, sem a menor sombra de dúvidas, é a mais cruel delas. O esforço e o desempenho foram elevados a um grande nada. No ano seguinte: todos os grupos optaram por comprar o trabalho.
A conduta dos professores deixa claro que não importa quanto esforço exista, simplesmente tem-se que ser subserviente, assim, “forma-se logo” e sem maiores problemas.
Um dos relatos mais tristes foi realizado por uma turma de instituição federal: a professora era muito exigente e cobrava que a resposta fosse quase uma cópia exata do livro. Cada acadêmico se responsabilizou por digitar uma parte da matéria, de modo que no dia da prova, todos possuíam exatamente a mesma “cola” que havia sido enviada por email para todos os alunos da sala. Todos estavam usando do mesmo método ilícito, mas apenas um deles foi pego, e depois do medo de serem denunciados ter passado esse único educando foi reprovado na disciplina devido ao “zero” na avaliação e os colegas por solidariedade ou por culpa, fizeram os trabalhos dele por um ano. Declarando considerarem uma injustiça o que aconteceu, mas não fazendo nada para mudar, alegavam que o medo é maior e não havia o que fazer para mudar: pertenciam à parte fraca da situação.
Quanto mais é relatado, mais absurdo fica. Alguns culpam a modernidade, outros culpam a pedagogia... As culpas são muitas e os culpados não existem, simplesmente porque não há comprometimento quando os seres são promíscuos.
Inicia-se assim mais um círculo vicioso no qual a cola faz com que o professor pense que as avaliações são razoáveis e, o aluno por ser avaliado de forma excessiva tenta burlar tal avaliação usando de métodos ilícitos, colando mais e mais.
Isso se estende para os projetos de pesquisa, muitos ingressam na pesquisa não por idealismo, mas por duas linhas a mais em seus currículos.
Abrange as monitorias que são tão mais concorridas quanto mais terroristas são os professores. Fazendo lembrar os escravos que mesmo depois de alforriados não conseguiam sobreviver longe da crueldade de seus senhores.
Na letra da música: “Passamos vinte anos na escola para aprender todas as manhas do seu jogo sujo. Mas agora chegou nossa vez, vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês.” E quem sofre são os doentes, os pacientes, o sistema... Uma guerra na qual não há vitoriosos, só mortos.
O texto do Monteiro Lobato poderia ser parafraseado para essa situação específica no linguajar acadêmico da seguinte forma: “Seus remotos veteranos não gozavam maiores quantidades. Seus bixos não meterão a quarta perna ao banco. Para quê? Vive-se bem sem isso.”
Poderia até terminar a reflexão proposta pelo texto comparando acadêmico de medicina ao tradicional “Jeca”: “Remendo (...) Para quê? Se a graduação dura seis anos e faltam ‘apenas’ cinco para que ele termine aquela? Essa filosofia economiza reparos.”.
Desabafou, hein, amiga!? hehehe... Concordo plenamente! Perdemos a coragem de reagir à tanta promiscuidade que nos é jogada na cara, dia após dia...seguimos em frente, como se nada tivesse acontecido e, com isso, nos tornamos cada vez mais fracos e impossibilitados de tomar atitudes. Vamos torcer para que um dia tenhamos a ousadia de erguer a cabeça a desafiar aqueles que subestimam nossa força e minam nossa vontade de crescer e dar o melhor de nós. Excelente texto...parabéns!! Bjão!!
ResponderExcluirSerá que eu preciso de discriminar algum comentário? Tenho a certeza de que não! Risos mais que irônicos...
ResponderExcluirQuanto ao banco de três pernas..., eu não poderia deixar passar essa..., como um futuro Plástico, eu colocaria duas pernas, quatro, cinco e até uma..., por que não inovar? Hahahaha! Plástico é Plástico... Sempre! Beijos, te gosto muito!
Primeiro, parabenizar a Mayra pelo texto.
ResponderExcluirO texto foca em um assunto bem polemico e bastante vivido pelos estudantes de medicina( e em uma analise mais ampla, qualquer estudante)
Discutir sobre COLA é algo um tanto quanto complicado. Quem, nessa vida, nunca colou? Estudante, em algum momento da vida, já colou. E Se ouvir alguem dizendo que nunca colou, essa pessoa está mentindo.
Acho que um ponto a ser levantado que nao foi dito no texto é no caso de nós, da rede particular, devido aos preços exorbitantes que pagamos, recebemos MUITA cobrança dos pais. A nota é algo que tem que sair, tem que ter média, tem que ser o melhor. Atrelado a terrorismos, professores malucos e avaliaçoes absurdar(e todos esses pontos que tu levantou brilhantemente), temos um quadro onde a melhor( por falta de palavra melhor) alternativa é a Cola.
Infezlimente, o Professor, o Catedrático possui todos os poderes dentro da instituiçao de ensino. Já ouvi uma frase assim: "O professor possui o garfo e a faca na mao e o aluno é o queijo. Ele te corta como ele quiser". E é exatamente assim....
Bjos, May
Parabens pelo texto
Causos curiosos ;D
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