terça-feira, 23 de março de 2010

O envelhecer, a solidão humana e a espiritualidade

"Uma mulher de cem anos foi abordada com a
pergunta sobre o que ela fizera de sua vida.
Ela então respondeu:
'Ainda não posso lhe dizer.
Estou viva e continuo a fazer minha vida'."
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Envelhecimento facilmente definido como ato ou efeito de envelhecer consiste em uma circunstância natural da existência humana que causa certo medo e desconforto social na atualidade. As estatísticas mostram que as populações mundial está envelhecendo, que a taxa de natalidade sofreu decrécimo nas ultimas décadas e que a tendência mundial é caminhar rumo a senelidade.
Alguns questionamentos surgem diante da realidade descrita, o primeiro deles é em relação ao medo descabido que as pessoas apresentam frente ao envelhecer, um medo que se manifesta de forma sutil em uma simples recusa corriqueira em relatar a idade ou ainda de formas mais efetivas como inúmeros procedimentos de cirurgia plástica a que as pessoas se submetem para evitar as marcas do envelhecimento.
Esse medo que a princípio chega a parecer descabido tem seus fundamentos, pois, o envelhecimento nos seres vivos de um modo geral consiste no desgaste do corpo depois de atingida a idade adulta. Esse desgaste pode remeter a idéia de um fim, ou ainda de que o fim está próximo, idéias que são difíceis de lidar uma vez que o inconsciente humano não concebe o conceito de finitude, mas sim o de transformação. A finitude gera um conflito mental, e, para lidar com esse conflito de forma saudável faz-se necessário reconhece-lo, refletir sobre as imposições obrigatórias advindas dele para então arrumar formas menos danosas para lidar com tais imposições.
A experiência prazeirosa do viver não depende apenas da satisfação de todas as vontades e desejos, mas sim da forma com que o indivíduo encara os limites impostos pela realidade. A maneira de experimentar a realidade é o fundamental.
E, a realidade do envelhecimento é permeada de novos e pequenos limites que surgem a cada dia. É uma realidade diante da qual faz-se difícil a adaptação, por remeter ao limite absoluto que é o da finitude da existência. O limite do fim pode surgir na conscientização do fim da própria existência ou ainda do fim da existência dos que são próximos.
Tal quadro deixa o sujeito vulnerável a grande solidão humana, uma solidão que pode ser util para desenvolvimento da imaginação, ou prejudicial gerando tristeza e problemas neuropsiquicos. Uma solidão que existe desde o nascimento, afinal, por mais acompanhado que se possa estar, nunca se transmitirá uma sensação, um sentimento de modo absoluto como o ser o sentiu. A expressão é sempre é uma percepção de uma experiência, um relato que nunca é fidedigno ao absoluto, uma vez que cada ser é singular, ou seja, único.
No decorrer da vida surgem e se vão pessoas diferentes que até tentam entender as perspectivas umas das outras, mas nenhuma acompanhará a outra sempre. Quando há um ferimento, só o ferido pode saber exatamente como é a dor mesmo sendo capaz de descrevê-la somente o ferido pode senti-la. A experiência é transmitida de certo modo, mas não transferida de modo integral.
Essa solidão das sensações é uma forma de isolamento: nasce-se só, vive-se entre outros e morre-se individualmente. Esse mecanismo faz com que as pessoas busquem uma conexão com algo que é maior que a efemeridade da própria existência e assim surge uma busca pela espiritualidade, algo tão comum entre os idosos.
É dito popularmente que "um ignorante aos cem anos é só um velho ignorante", esse dito tenta legitimar que a idade não acresceta obrigatoriamente valores. Mas há de se considerar que as experiências quando bem vividas e sublimadas transformam os sujeitos, numa ascese (exercício espiritual).
Em busca de uma transformação que ajude a estruturar os alicerces da alma muitos procuram a espiritualidade.
A espiritualidade é uma transformação constante e cotidiana que busca fazer com que o bom se torne ainda melhor. A grande maioria encontra a espiritualidade na religiosidade, mas ela pode se desenvolver por outros caminhos, como o estudo de filosofias, literatura, contemplação obras artísticas, dentre outras.
A religiosidade possui algumas peculiaridades fundamentadas pela teologia, pois, segundo o teólogo Mircea Elíade para estruturar uma religião precisa-se ter um mito (uma história acerca da qual o homem se ligue novamente ao divino), um rito (uma forma de expressar esse elo) e um símbolo (uma representação daquilo que não pode ser representado em absoluto). Por tão significativa estruturação a religiosidade é um caminho através do qual muitos idosos conseguem atingir um exercício de espiritualidade, se ligando a uma comunidade, fazendo trabalhos filantrópicos e afastando-se de um pouco da solidão, pois, uma vez que todos são filhos de Deus, de um Criador, ou uma Força Maior, pode-se concluir que todos são irmãos. E, aqueles que têm irmãos, tem alguém sempre ao lado, alguém para ajudar, alguém que também fornece ajuda e alento.
Ainda há o fato de que ao projetar uma vida no pós-morte com conceitos como o de eternidade, paraíso, outra encarnação e muitos outros, consegue-se aliviar o conflito gerado pela idéia de finitude absoluta.
Não cabe ao profissional de saúde, ao familiar ou a qualquer outro cuidador, julgar se a espiritualidade que aflora no idoso é um alento, se é verdadeira ou a ideal a ser vivida.
Faz-se necessário entender que a vida já possui sofrimentos sufucientemente significativos, sofrimentos diários, limites contínuos que em determinadas situações se agudizam, e que a entrega a uma experimentação da espiritualidade, da contemplação da existência ajudam a lidar com tudo isso de forma a superar as mazelas intrínsecas ao processo de envelhecer.
Cecília Meireles, no poema "Retrato", explicita esse processo: "Eu não tinha esse rosto de hoje,/ assim calmo, assim triste, assim magro,/ nem estes olhos tão vazios,/ nem o lábio amargo./ Eu não tinha essa mãos sem força,/ tão paradas e frias e mortas;/ eu não tinha esse coração/ que nem se mostra./ Eu não dei por esta mudança,/ tão simples, tão certa, tão fácil: - Em que espelho ficou perdida minha face?"
Só com o entendimento da espiritualidade como agente transformador do ser é que se torna possível aceitar as mudanças que os anos impõem. Pode-se lidar de forma saudável com a senilidade, reconhecendo nas muitas fisionomias das diferentes faixas etárias a própria face. A espiritualidade permite o reconhecimento do que é imutável no ser (dons conferidos pelo Criador à suas criaturas); Por entender que os agentes que sofrem transformação são os valores efêmeros, as representações; Por propiciar ao humano a possibilidade de se tornar a própria mudança que sonha em ver no mundo.
Nas palavras de Mahatma Gandhi: "A alegria está na luta, na tentativa, no sofrimento envolvido e não na vitória propriamente dita."
A alegria está na vida, esse constante envelhecer.

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