sábado, 10 de março de 2012

Vodca demais e responsabilidade de menos

“Somos responsáveis por aquilo que fazemos, o que não fazemos e o que impedimos de fazer.” - Camus



Quando eu era menino, lá no Rio de Janeiro, meu pai mineiro me contava as histórias das suas Minas Gerais, das cidades de Minas... para cada uma delas tinha suas referências, a excelência do gado de Uberaba, as igrejas de Ouro Preto, a lagoa da Pampulha.


Nesses tempos, eu ainda não imaginava que décadas mais tarde iria me apaixonar e viver em uma daquelas cidades de Minas das quais ele falava com orgulho, embora muitas delas nem mesmo tivesse conhecido. Mas eu me lembro, ah se me lembro, de que quando um dia me falou de Itajubá, chamou-a de... Cidade do Estudo. Papai gostava de falar dos colégios de Minas, do Grambery e da “Academia” de Juiz de Fora, e bastava que eu tirasse uma nota um tantinho ruinzinha ou não obedecesse minha mãe em alguma coisa que o nome do Caraça surgia com tom de ameaça... Mas voltemos a Itajubá, a cidade do estudo: papai falava da Escola de Elétrica de Itajubá, de Wenceslau Brás e Delfim Moreira, que para mim nada mais era que o nome da avenida da praia do Leblon. Um dia, lendo um jornal, me disse: “-Olha só... lá em Itajubá, além da escola de elétrica, vão abrir uma faculdade de medicina... agora que aquilo lá vai se tornar mesmo a cidade do estudo...!”


E lá se vão mais de quarenta anos... Vivi a vida toda tendo por referência de Itajubá esse legado que guardo de meu pai: a cidade do estudo. Quando aqui cheguei pela primeira vez, logo me levaram a conhecer a Unifei e a Faculdade de Medicina, como orgulhos da cidade.


Me encantei por Itajubá e sua gente, aqui vim formar nova família e amigos fraternos. E cada vez que voltava ao Rio, quando enchia a boca de orgulho para dizer que iria morar em Itajubá, qual não era o meu espanto quando ao contrário do que eu esperava, as pessoas com as quais falava sobre Itajubá não a conheciam como cidade do estudo da qual papai falava, mas sim “a cidade do prefeito que pagou mico no CQC da Band.”


Ainda assim, aprendi a respeitar e a admirar essas duas instituições, a Unifei e a Faculdade de Medicina, que faziam meu pai mineiro chamar Itajubá de “a cidade do estudo”. Passei a conhecer essas duas instituições, a Unifei através do meu assessor de comunicação, Luiz Otávio Coutinho, coincidentemente egresso na mesma faculdade e da mesma turma onde concluímos o curso de jornalismo. A Faculdade de Medicina, a AISI e o Hospital Escola, principalmente por terem salvo a vida e devolvido a saúde de minha mãe, a apenas dois meses atrás.


Conheço o Hospital Escola por dentro... conheço a Faculdade de Medicina de Itajubá, e sobretudo conheço a competência e a seriedade de suas diretorias, de seu corpo médico e docente, de seus funcionários e projeto pedagógico. Por este conhecimento, causa-me espécie a nota atribuída à FMIt no último Enade. Se a instituição é a mesma, se o seu corpo docente é o mesmo e de alto nível de excelência, como explicar que em apenas três anos, o rendimento dos alunos de medicina em Itajubá tenha caído da nota quatro – numa escala de zero a cinco – para nota dois? Essa nota dois não me parece refletir a realidade dessa instituição que é um patrimônio acadêmico não só da cidade, mas de Minas Gerais.


Façamos um contraponto: no mesmo mês dessa tal nota dois no Enade, uma acadêmica do quarto ano de medicina da FMIt, Mayra Lopes de Almeida Reis, foi agraciada em Ouro Preto com o Prêmio Carlos da Silva Lacaz por sua monografia sobre “Aspectos Históricos do impacto das necrópoles na saúde”. Não sou médico, não tenho idéia do assunto a qual a monografia da acadêmica Mayra trata especificamente, mas aposto minha formação como jornalista, como educador e como pai, de que a custa destee prêmio tem, como um de seus alicerces, “Dedicação demais e xurras e vodca de menos”.


E me pergunto aqui com meus botões: por que órgãos de imprensa noticiam em letras garrafais o Enade, e sequer uma linha sobre a conquista da acadêmica é noticiada?


Diz a velha piada que, ao encontrar a esposa com um amante na sofá da sala, o marido bobo resolveu o problema vendendo o sofá! Pois bem: o MEC agora quer vender o sofá, diminuindo o número de vagas para novos alunos na Faculdade de Medicina de Itajubá...!


Em ultima análise a diminuição do número de alunos da faculdade de medicina no próximo ano implicará, certamente, em uma significativa redução na receita da instituição, o que certamente se refletirá na qualidade do atendimento médico e hospitalar não só de Itajubá como de tantos outros municípios que gravitam em torno da cidade.


E a quem interessa, verdadeiramente, a diminuição de recursos da FMIt? Enquanto políticos verdadeiramente comprometidos com a qualidade de vida de Itajubá lutam por recursos para, por exemplo, a implantação de um centro de hemodiálise no Hospital Escola, outros viajam para Belo Horizonte, com diárias de 600 reais custeadas pelos cofres do município, para buscarem recursos para beneficiar sim, não exatamente à população da cidade, mas instituições com fins lucrativos que prestarão o mesmo serviço que o Hospital Escola oferece gratuitamente através do SUS.


Enfim, percebo que vivo hoje numa cidade sujeita a algumas inversões de valores: numa cidade em que pistas de MotoCross se transformaram em chiqueiros, e nem ouso perguntar quem são os donos dos porcos... A cidade do estudo a qual meu pai se referia, se transformou nos últimos três anos na cidade que paga mico em programa de humor que faz denuncias de maus tratos com a coisa pública. Talvez seja este quadro uma resultante de xurras e vodca demais, e consciência cívica de menos. Apenas de uma coisa tenho certeza: a instituição da FMIt, a AISI, o Hospital Escola, não podem sofrer as conseqüências do mal uso que de sua excelência fazem os que, ao contrário da acadêmica Mayra Reis, não têm compromisso com o artigo 14 do código de ética do estudante de medicina: Defender a saúde como direito inalienável, universal e contribuir para consolidação e aprimoramento do Sistema Único de Saúde.


Talvez seja o caso de xurras demais e compromisso de menos. De uma coisa, entretanto, estou certo: A Faculdade de Medicina de Itajubá não merece o que estão tentando fazer com ela.


Texto narrado na Rádio Futura no dia 30/11/2011.

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