terça-feira, 30 de março de 2010

Debate com a turma AB

"Aprender com a experiência dos outros é menos penoso
do que aprender com a própria."
José Saramago


Perguntas elaboradas pela turma AB após a leitura do texto "O outro da Anatomia":


1. Gostaríamos que você comentasse porque a falta de humanização começa na anatomia e não nas outras disciplinas.

1. Após as observações torna-se possível concluir que a falta de humanização não é algo que se instala de forma nítida e concreta, ou mesmo a partir de um determinado momento específico. Não existe um marco a partir do qual um profissional passa a ser desumano.

Eis aí um dos principais problemas. Os profissionais desumanos não são visivelmente diferentes. Não possuem uma placa na testa e podem ter inúmeros comportamentos humanizados.

Um grande dilema da sociedade atual consiste em acreditar que os desonestos, os desumanos, aqueles que erram são seres quase que maléficos. Tal fato não procede, ocorre que tais indivíduos são pessoas muito parecidas com as demais, com os mesmos anseios e medos que todo ser humano tem que carregar e aprende a lidar ao longo da existência.

E assim, nos pequenos detalhes as atitudes desumanas vão aparecendo primeiro em um dia de pressa, segundo em um dia de stress. Então surge a justificativa das dificuldades familiares, das contas para pagar, do transito; E, no final tudo vai se tornando justificável e os absurdos vão sendo instalados como que atitudes normais de uma pessoa sob stress. E os profissionais se acostumam ao absurdo como se fosse o normal e a população reclama, mas se acostuma com o alívio da reclamação que nada resolve.

E, num dado momento quando o olhar foca na realidade e avalia o trabalho oferecido em determinado serviço de saúde aparece a tão mencionada falta de humanização, que não é exatamente de uma pessoa grossa que não gosta de desejar “Bom dia”, mas sim de inúmeros “Bons dias” que vão se calando pela falta de tempo, pelo tamanho da fila, pelas inúmeras vezes que se repediu esse mesmo “Bom dia”; Pelo ar de superficialidade que a cortesia vai tomando ao ser tão repetido, assumindo um tom que lhe confere ares de obrigatoriedade.

Não considero que a anatomia torna ninguém desumano, a boa anatomia, a anatomia bem ensinada torna a pessoa humana. Digo apenas que no trato com o cadáver pode-se prever, pode-se deduzir como será o trato com o ser humano. Isso ocorre por se tratar de uma relação concreta e real que tende a se tornar nítida mediante a atitude desumanizada, de forma que os gestos as respostas e o estudo vão se focando na estrutura e não no outro.

E o outro vai sendo esquecido e a medicina vai sendo abortada. Quando o absurdo é visível ao contemplarmos o óbvio, o cotidiano é a vida que vai mal.


2. Você não acha que é exigente ao cobrar tanta maturidade dos alunos?

2. Resposta cruel e direta: não. Mas vejo fundamento ao realizar uma pergunta dessas. O acadêmico é um adolescente e é preciso um ser formado para assumir tamanha responsabilidade e tamanha autenticidade. Mas quando alguém se dispõe a algo deve desenvolver as características necessárias para se realizar o que foi proposto. Quando alguém se propõe a cuidar do outro tem que conseguir fazê-lo se empenhar de completamente para alcançar o objetivo.

O que observo em grande maioria é uma turma adolescente com valores infantilizados onde é vantagem perder o controle sob efeito de álcool, ou ainda é vantagem e super inteligente não estudar e ir bem. E todos esses valores menores vão substituindo valores fundamentais como a responsabilidade, o comprometimento.

Sei que mesmo para aqueles que se empenham a cobrança é cruel e exige muito, mas não devemos nivelar as turmas e as pessoas pelo que é ínfimo, devemos esperar por mais, pelo melhor que alguém pode ser.

A instituição de ensino tem que embasar e fornecer recursos para ajudar os alunos nessa tarefa de conseguir suprir as necessidades, nesse “dar conta” dessa tão dolorosa missão.

O contexto atual é sugestivo de que as instituições ainda se adéquam para ajudar os alunos a conseguirem a corresponder a tantas cobranças. Não é tirando cobranças ou sendo negligentes que conseguiremos profissionais melhores, é fornecendo embasamento para que os profissionais se tornem melhores que conseguiremos corresponder às verdadeiras demandas da sociedade.

3. Qual seria a sua sugestão de aula para resolver o problema?

3. Essa pergunta toca a sede da fragilidade de todas as discussões, não existe uma postura ou um protocolo de atitudes que façam com que as pessoas se tornem humanizadas ou uma lei que obrigue a medicina a ser efetiva na sua execução. Existem sim posturas, existe empenho, existe uma atenção diária objetivando ser melhor do que se era, um cuidado que é constante contínuo e que exige muito daquele que se compromete a exercê-lo.

Não é uma norma que faz a roda girar, é a boa vontade daquele que emprega a força para mover o que há muito tempo já sabemos como deve ser feito. Mas esse é um trabalho acerca do qual bem poucos se propõem a realizar devido a inúmeras expectativas que se deve corresponder.

Uma boa aula não é apenas aquela bem preparada que consiga apresentar todos os tópicos da disciplina, é aquela ensinada com entusiasmo, assistida com atenção. E o que sabemos são de pessoas que vão responder chamada, pois estão com sono, estão esperando feriado, estão tão insatisfeitas que fazem por obrigação o que deveria ser um prazer.

4. Para você, qual é o objeto de estudo da medicina, o que diferencia o médico de um amigo que escuta?

4. Ao final do texto deveria se concluir como o objeto de estudo da medicina: o outro. Mas o outro em sua completude, em todos os aspectos de sua existência, com o corpóreo, o espiritual, o mental.

O médico não é um amigo que escuta, mesmo por vezes sendo amigo, mesmo por vezes baseando o atendimento na escuta.

A resposta que o médico dá ao paciente deve ser sempre no sentido de ajudá-lo a resolver o que motivou a consulta.

Um amigo diante da apresentação de um problema deve oferecer uma resposta simpática, o médico deve oferecer uma resposta empática, sem assumir para si a dor do paciente e sem ser indiferente. Deve reconhecer a dor, saber que não é sua, mas que deve estar motivado para resolvê-la. Parece bem fácil quando dito, mas a prática de tal teoria é de difícil aplicação.

O médico ainda fornece algo que o amigo pode oferecer ou não que é a certeza de sigilo, procurando não emitir opiniões ou julgamentos, e sim assumindo uma postura ética e de auxílio.


5. Como presidente do "Projeto Humanizarte", o que você acha dos alunos comparecerem ao hospital no primeiro ano?

5. Eu sou ex-presidente do "Projeto Humanizarte" que foi uma experiência de profunda alegria na minha vida. Os alunos chegam com dificuldades de acompanharem o projeto, mas essas dificuldades vão sendo vencidas a cada visita, a cada contato com o paciente.

Acredito que medidas como o projeto são um grande benefício na formação médica, por mostrar o contato com outro. Por facilitar a forma de abordagem. Por reduzir medos.

Porque mesmo que de forma inconsciente todos sabem: “Quando eu vejo o outro o outro também me vê." Quando eu vejo a morbidade do outro, o outro vê as fragilidades da minha alma. Não existe um contato se ambas as partes não se tocam.

O Humanizarte propicia exatamente esse contato e assim permite ao acadêmico mais coragem diante do outro, mais coragem em assumir o que é, inclusive suas limitações.

Certamente eu acredito que algo que me fez ser mais “gente”, também ajudará aos meus colegas.


6. Só alguns estão preparados para irem ao Projeto Humanizarte no primeiro ano, como então mandar todos os alunos para o contato com o outro, logo no início do curso?

6. É algo importante de ser mencionado, porque existe uma seleção efetuada para entrar no projeto, e essa seleção visa escolher os mais aptos, particularmente acredito que todos estão aptos a entrar. Não é escondendo debaixo da cama, debaixo da pouca idade, debaixo da timidez que venceremos nossos limites é indo de encontro a eles e arrumando estratégias para vencê-los que iremos superar as situações. Mas o projeto lida com uma limitação que é mais concreta do que ideológica, é complicado oferecer apoio psicológico, acesso ao ambiente hospitalar, material para as práticas hospitalares, oficinas para sublimar as aptidões artísticas para tantos alunos.

Não importa o momento esse é o tipo de abordagem sempre benéfica desde que estruturada, levada com cuidado e carinho.

Lembro-me bem que no ano em que estava presidente acompanhei os grupos em sua primeira visita. Em um grupo especificamente após a visita de uma paciente de cuidados paliativos (paciente terminal) uma das meninas do grupo se emocionou, saiu acompanhada de outra enquanto continuamos a visita com a paciente, que correu de forma super agradável. Depois da visita, sentamos em uma sala do hospital e discutimos o que havia ocorrido. Esse é o tipo de abordagem que dá estrutura, emocionar-se com alguns fatos é normal, o diferencial do profissional está em exatamente como ele lida com as emoções as quais sente. E só melhora-se a forma de lidar quando essa forma é avaliada e sugestões são feitas e acrescidas de forma a incorporar novas ações na relação.


7. Você considera que a expressão "cegos conduzindo cegos" usada no texto é uma generalização? Exatamente a que essa expressão se refere?

7. Certamente é uma expressão muito carregada, e eu gosto disso, porque faz com que as pessoas levem aquele choque que nos chama a refletir.

Os professores são cegos, conduzindo seus alunos que são os segundos cegos da sentença.

É forte e algo que pode ser facilmente mal interpretado, mas que eu vi a necessidade de colocar para chamar a atenção para algo que é jogado para debaixo dos tapetes da educação médica, para algo que é pouco discutido e cruelmente omitido da maioria dos debates.

O fato é que no Brasil, até o atual momento, existem mestrados aos quais os professores devem passar para ensinar em universidades. A grande realidade é que nem todos aqueles que lecionam em universidades médicas tem esse tipo de formação ou qualquer outro tipo de formação direcionada a ensinar medicina.

O que existem são médicos dando aula, médicos tentando fazer médicos. Cegos conduzindo cegos. Não por não conhecerem o caminho. Isso pelos próprios anos sucessivos de atendimento eles sabem. Estão a muitos anos nesse caminho, e por isso o conhecem. Mas não aprenderam a conduzir. E por vezes induzem e por vezes fazem cobranças pouco didáticas.

A sentença não visa culpar ou mesmo julgar, admiro imensamente os professores só pela coragem de se proporem a ensinar, mas são pessoas que tentam dar algo que sequer receberam, a formação desses mestres no quesito didática está longe de ter sido a ideal e então eles tem que se adaptar a mudança da época, as tecnologias, o que já exige um grande esforço.

Com tantas mudanças a serem incorporadas, a didática continua a mesma, pois pouco tempo é destinado a esse campo.

Mudar isse ponto não só é difícil pela falta de recursos, formação e tempo para a atualização, mas também pelo golpe que isso é na vaidade individual, pois fornecer uma formação diferente da que foi recebida é assumir que de certa forma não foi recebido o melhor que poderia ter sido recebido.

Concluo, portanto, que é uma generalização, que é cruel e que pode ser mal interpretada, mas creio que por chocar faz refletir, e é algo acerca do qual eu adoraria que as pessoas refletissem muito.


8. Como melhorar para não deixar cegos conduzindo cegos?

8. Um começo poderia ser exigir mais do curriculum dos professores. Outra saída pode ser propor uma formação específica no país para quem deseja ensinar medicina, porque ensinar medicina e praticar medicina são atos distintos. Como é perceptível, existe muito trabalho a ser feito.


9. Exite uma falta preparo para lidar com o processo natural como a morte, você acha que existe alguma medida para lidar com isso?

9. A falta de preparo é algo que existe e pode ser percebida em pequenos detalhes no hospital. Como por exemplo, no fato de ninguém querer dar a notícia de óbito para os familiares. Algumas situações são mesmo delicadas. Mas o profissional deve estar preparado para enfrentá-las e resolve-las da melhor forma possível.

Creio que a melhor medida para ser efetivo nesse trato com a morte é conhecer o tema, saber das formas com que as civilizações lidaram com ele até a atualidade, trabalhar os conceitos particulares para estruturar melhor essas idéias na vida individual e particular de modo a transmitir isso para o paciente.


10. Você acha que deveria existir uma especialização para lidar com a morte e o morrer?

10. Essa é uma proposta principalmente no campo da residência em paliativismo. Mas minha opinião particular é que se deve estruturar a formação em medicina oferecendo recursos para que todo médico possa oferecer esse tipo de cuidado tão necessário. Por vezes, oferecer um serviço especializado em uma área de difícil indicação é como deixar que apenas os casos de grande gravidade tenham acesso ao tratamento.

É corroborar mais ainda para a burocratização e redução da eficiência do serviço de saúde.

Talvez a especialização possa melhorar esse quesito, mas a resolução dessa dificuldade em tratar a morte e o morrer só terá melhora significativa quando se investir nesse tema na formação de todos os profissionais, na formação da graduação e não apenas na pós-graduação, na especialização e assim por diante.

3 comentários:

  1. Muitíssimo interessantes suas colocações. Visão bem pragmática de algo há tanto negado. Em comentários anteriores, vc afirma sobre a possível origem do costume de se colocar pedras sobre os túmulos. Gostaria de saber, entretanto sobre o costume de colocar pequenas pedras nos bordos das lápides. Já é o segundo filme que eu assisto (A lista de Schingler e Lembranças) que registram essa situação curiosa.

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  2. O costume de colocar grandes pedras remetem a represenação do self daquele que se foi. O marco da perda.
    Quanto a pequenas pedras, não encontrei em nenhum livro. Mas por analogia, dá para deduzir que essas pequenas pedras podem simbolizar a saudade de quem fica. Como se cada pedrinha fosse um momento em que a perda se mostrou presente, inúmeras pequenas experiências que remetem à solidão de quem fica.
    Ou ainda, podem ser a representação de que algo de quem fica vivo se vai junto devido a perda e a falta daquele que já morreu.
    Pensei nisso por me lembrar de um túmulo em que a viúva fez sua representação morta, em pedra, sobre o túmulo do seu falecido marido. Ela tentou mostrar que mesmo não morrendo em absoluto, algo dela se foi junto com ele.
    As possibilidades são muitas, só nos resta montar hipóteses enquanto não possuimos resposta verdadeiramente concreta.

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  3. Seu blog foi mencionado aqui: http://consiliencia.blogspot.com/2011/05/quem-e-sabio.html

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