quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

O "outro" da anatomia

"Talvez possamos viver sem 'por que'.
A rosa floresce sem 'por quê'
Mas não podemos viver sem 'para quem' "
Jean Yves Leloup

Segundo as diretrizes curriculares para o curso de medicina, o profissional médico é aquele com: "Formação generalista, humanista, crítica e reflexiva. Capacitado a atuar, pautado em princípio éticos, no processo saúde doença em seus diferentes níveis de atenção, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação à saúde, na perspectiva da integridade da assistência, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano."
Mas apesar de elucidativa, a descrição curricular não menciona algo bem simples e de suprema importância, informação que por ter sido ignorada tem gerado inúmeros problemas na formação médica e consequentemente na prática clínica no que tange a relação entre o médico e o paciente. A questão central suprimida é resumida em uma pergunta simples: "Qual o objeto de estuda da medicina?"

Quando interrogado, o público, de um modo geral, tende a responder que é a doença, com algumas respostas que tendem a complementar que não só a doença, mas também a saúde, a promoção da saúde. Mas não definem com segurança o que é saúde e doença, apesar de sempre tentar fornecer uma explicação para tais conceitos.

Quando a mesma questão é colocada aos profissionais de saúde, em especial estudantes de medicina a resposta é quase unanime: "o corpo" e os processos de saúde e doença do mesmo. Mas ao serem aclamados a definir saúde e doença prontamente respondem o conceito da OMS (Organização Mundial de Saúde) como que decorado: "saúde não apenas a ausência de doença, mas como a situação de perfeito bem-estar físico, mental e social".
Mediante a constatação de tais respostas é perceptível a falência do modelo pedagógico assistêncial que vem formando os profissionais e que resultam em queixas por parte dos pacientes atendidos, sendo as que as principais consistem em um desconforto na relação devido ao distanciamento e frieza por parte do profissional durante a execução da prática médica.
O acadêmico e muitas vezes o profissional de saúde já graduado sequer sabem qual é o objeto de estudo da medicina.
Ora, por definição, a medicina estuda "o outro".
Recorrendo ao dicionário: "Outro – do latim alteru (outro entre dois) significa diverso do primeiro, diferente de pessoa ou coisa especificada."
Segundo o filósofo Sartre, "o outro é o eu que não sou eu".
Mas "o que não sou eu" é conhecido a partir de um parâmetro, e esse parâmetro é "o que eu sou", logo, a qualidade das relações que o homem trava com o outro depende não apenas da simpatia de que é investida, mas também, do auto-conhecimento do indivíduo e do conhecimento recíproco dos protagonistas.
O problema consiste em se ignorar o outro fato que é consequência de uma instituição educacional que informa e não forma, que transmite conhecimentos mas não consegue fazer sentir as subjetividades do sujeito vivo.
Em uma tentaiva de inovar o ensino universitário e pensar o problema da falta de humanização no atendimento, pesquisadores avaliaram e formularam a hipótese de que o embrião do problema se encontra nas origens da formação médica, exatamente na aula de anatomia, quando o acadêmico, segundo relatos: "começa a se sentir médico".
"O cadáver é, assim, o primeiro paciente do futuro médico. O modo pelo qual o estudante lida com esta situação tem fundamental importância na formação de sua identidade profissional." (Charlton et al.,1994)
O grande problema do educando diante do cadáver é que a morte é apresentada mas não é denominada, pouca atenção é dada a ela e foca-se o ensino no corpo, nas estruturas anatômicas, no relevo, nos sulcos e tubérculos, nos órgãos, nas partes.
Sem ser denominada e discutida, a morte não entra no plano do entendimento simbólico da psique daquele que estuda o corpo. E, permance na forma de conflito psiquíco, uma vez que não foi simbolizada, e o acadêmico não sabe como lidar com ela.
O cadáver assume dupla função em tal momento: a protetora, pois livra o fragilizado estudante de lidar com o doente e com as doenças as quais ainda não conhece. E, a função angustiante, pois expõe a aquele que estuda a angústia de ver a morte no morto. A partir de então, surge uma negação da morte, uma fuga, uma incapacidade de se lidar com o princípio da realidade que é a finitude. Ao fugir da morte, nega também a sua figura palpável que é o morto, não vê no corpo do cadáver o outro para não ter que ver a si mesmo, a finitude a que está subjulgado.
"O que a técnica anatômica pretende é, diante de um substrato dado, orientar-se num espaço já constituído, torná-lo visível e explorálo geograficamente. Prática investigatória e não clínica, a dissecção não trata do doente e da doença. Ela trata do cadáver como uma figura exterior e objetiva." (Foucault, 1987)
Assim o corpo é geografia a ser observada e não uma historia a ser contada, estudada.
"Perdendo a dimensão histórica, o que se perde é a vida e a sexualidade. O corpo morto, mobilizador de curiosidades e angústias, exige, daquele que o observa, neutralidade para vencer a náusea, o horror e a repugnância." (Fèdida, 1971)
Mediante a problemática do cadáver o vídeo "Lição de Anatomia" mostra um grupo de médicos que se formaram juntos conversando em um restaurante depois de alguns anos já atendendo e abordam a temática da morte a partir da perda de um colega de profissão que os remete as aulas de anatomia e a todo um desconforto que todos sentiam diante do cadáver, mas acerca do qual se calavam na época por acreditar que o desconforto não poderia existir em um sujeito vocacionado a medicina.
"Mata-se, no aluno, sua capacidade de envolvimento emocional com o paciente visando se, assim, supostamente, habilitá-lo a lidar com a morte." (Zaidhaft, 1990)
Essa postura educacional culmina em sofrimento em todos o ambitos: no escolar, no familiar e no profissinal, fazendo parte de um curriculum oculto que é ensinado na faculdade, um curriculum cujas ementas educacionais não são descritas, mas temidamente silenciadas e aprendidas de forma automática e inconsciente, pois são os temas que fazem os professores calarem ou ainda mudar o foco da atenção, uma vez que, salvo raras excessões, os próprios formadores não tem a questão da morte bem elaborada sequer para si mesmos; Cegos conduzindo cegos.
"A morte e o morrer deveriam ser incluídos nos currículos médicos, possibilitando aos estudantes tornarem-se, posteriormente, médicos com compaixão e sensibilidade, propondo, para isto, modificações curriculares." (Penney, 1983)
Grandes dificulades aparecem então, afinal, como um professor vai ensinar algo que faltou na sua própria formação profissional. É crucial elaborar uma formação para professores de medicina.
Não basta e não resolve culpar a anatomia, a anatomia é apenas uma ciência que utiliza do cadáver para a formação ensinando ao academico acerca do corpo.
A solução da falta de atitudes humanitárias por parte do médico não está em estigmatizar a anatomia, a solução pode ser contemplada inserindo cultura, historicidade, um sentido de forma que as dissecações e o estudo da anatomia possa ser feito tanto no plano material quanto no plano psíquico simbólico, mas para efetivar o aprendizado é preciso que o professor explique a importância do cadáver e esclareça que o objeto de estudo da medicina é o outro e que o cadáver deve ser respeitado como a parte corpórea do outro, pois o mesmo não é o outro em absoluto, mas é o outro de certo modo.
O outro tem que ser vislumbrado em seu nível simbólico para posteriormente ser contemplado em seu nível corpóreo, só a beleza e a arte podem dar sentido e forças para o humano superar a dor e lidar com as limitações, com a finitude; O que é brilhantemente explicitado por Rubem Alves em uma analogia com o aprender música: "Se fosse ensinar a uma criança a beleza da música não começaria com partituras, notas e pautas. Ouviríamos juntos as melodias mais gostosas e lhe contariasobre os instrumentos que fazem a música. Aí, encantada com a beleza da música, ela mesma me pediriaque lhe ensinasse o mistério daquelas bolinhas pretas escritas sobre cinco linhas. Porque as bolinhas pretas e as cinco linhas são apenas ferramentas para a produção da beleza musical. A experiência da beleza tem de vir antes."
Referências:
CHARLTON, R., DOVEY, S. M., JONES, J. G., BLUNT, A. Effects of cadaver dissection on the attitudes of medical students. Med. Educ. , v.28, p.290-5, 1994.
FÈDIDA, P. L’anatomie dans la psychanalyse. Nouv. Rev. Psychanal., n.3, p.109-26, 1971.
FERREIRA, Aurélio B. de Hollanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
FOUCAULT, M . O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.
LIÇÃO DE ANATOMIA. Direção: comunitária. Produção: Fundação José Bonifácio. Roteiro: João Luiz Leocadio da Nova, José Joffily Bezerra Filho, Liana Albernaz de Melo Bastos. Rio de Janeiro: UFRJ, 1999. Uma fita de vídeo (16 minutos).
PENNEY, J. C. Reactions to human dissection: a report and a proposal for curriculum modification. Proc. Annu. Conf. Res. Med. Educ. v.22, p. 220-5, 1983
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Editora Vozes. Petrópolis, 1997.
ZAIDHAFT, S. Morte e formação médica. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990.

2 comentários:

  1. parabéns Mayra,... fui acidentalmente parar por aqui e admirei o conteudo do seu blog.

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