Resumo
O cemitério é o lugar onde se abriga a morte, e a morte abrigada se compraz em socorrer a vida. Socorrer a vida ao promover a saúde ajudando o humano a lidar com a efemeridade e com suas limitações. E, socorrer a vida de forma holística, pois institui uma forma de lidar com a morte, promove efetivamente a saúde nos âmbitos: corpóreo, psíquico, público e espiritual. Perceptível em cada uma das áreas de modo específico.
Considera-se, portanto que o surgimento e sua perpetuação na história se devem ao fato de ser um agente promotor de saúde em diversos âmbitos e que vem sofrendo conseqüências sociológicas que tem afetado sua funcionalidade em decorrência de mudanças no aspecto estético e físico do mesmo.
Palavras-chave: cemitério, saúde, sociedade.
Abstract
The cemetery is a place where death finds shelter and sheltered death aids life. It does so when it fosters health helping human beings cope with transience and its limitations. It does so when it aids life in an holistic approach, creating a way of dealing with death, fostering health in different aspects: material, psychic, public and spiritual. This is discernible in each one of these areas in a very specific way. It is considered that its creation and permanence along the years in History, is due to the fact that it is a health promoting tool in distinct areas and also that it has been suffering sociological consequences that have affected its performance in relation to changes in its physical and aesthetic aspects.
Key-words: cemetary, health, society.
Introdução
Segundo o dicionário, cemitério é um substantivo masculino que designa o lugar onde se sepultam os cadáveres dos mortos. O termo pode ainda assumir diversas conotações que tendo sentido amplo, pode variar desde “local onde ocorre muita mortandade” incluindo até seu uso para adjetivação de situações, indicando lugar silencioso e desértico, como na expressão “paz de cemitério”.
Na vida prática, assume conotações simbólicas não só no que tange a vivência religiosa, mas no que alcança conceitos como efemeridade e a saudade relacionada ao enterro do corpo, assumindo um caráter coletivo enquanto local público.
Ao avaliar a instituição que é o cemitério em seus diversos aspectos na cultura ocidental, faz com que se levante o questionamento: Por que existem cemitérios?
Considerando-se que o cemitério não é o lugar onde ocorre a morte pode excluir-se a hipótese de que ele existe porque a morte existe. Mesmo porque, nem tudo o que morre será sepultado em um cemitério.
A curiosidade se aguça para saber não só o que cria a necessidade do cemitério, mas também na busca do porquê de sua existência e permanência no decorrer da história da humanidade.
É, portanto, a base ideológica fundante do cemitério que deve ser alcançada.
Por meio da dedução lógica, diante de vasta teoria sobre o tema, fica claramente perceptível que a função medular que sustenta o surgimento e a manutenção dos cemitérios encontra-se no fato de este ser uma medida de salubridade completa.
Uma medida salubre não só no aspecto bioquímico e epidemiológico que possui, mas por ser uma medida de saúde de abrangência holística, alcançando caracteres humanos básicos tais como: saúde mental da população diante do luto do indivíduo, por ser o último cuidado dispendido para com o corpo, por ser relevante quando a disseminação das epidemias, e ainda por ser no âmbito simbólico responsável pela estruturação do ser inserido na história e diante da eternidade, confluindo para a saúde espiritual no campo religioso.
Abrigando a morte
Seguindo a lei da conservação, na natureza nada se cria tudo se transforma. O ciclo vital mostra que a morte existe todo tempo e que se o morrer é constante isso se deve ao fato de que é sucessão da vida, que só porque se renova pode extinguir-se sempre.
Mesmo defrontados com o constante morrer da natureza não houve um só pensador que ousasse defender a idéia de que o mundo é um macro cemitério.
Isso ocorre porque, se o morrer é constante, a morte em si em um fato, um evento que marca o fim do morrer constante das células do metabolismo de um organismo.
Além de ser fato, a morte é um marco, pois cada indivíduo só morre em absoluto e efetivamente uma única vez, e nesse momento sua história está fechada, e os que ficam podem considerá-lo um ser completo que cumpriu a sua função.
Tem-se então o defunto, tal qual na sua conotação etimológica: defunto, do latim defunctus, formada pelo prefixo de, com functus, que é o particípio passivo do verbo fungi (cumprir, acabar, pagar uma divida), vinculado a idéia de “aquele que cumpriu sua função”.
Na sociedade do morrer constante acumula-se história, uma história que culmina em normas e hábitos, que resulta em uma tradição.
É exatamente nesse contexto social que a cultura do cemitério se consolida. É justamente quando surge a necessidade de se abrigar uma tradição permeada de história, crenças e imaginário simbólico que aparece a capacidade de se atribuir a tal abrigo um lugar.
O lugar escolhido é o mesmo que abriga o corpo do que se foi, e as conotações do luto simbólico: o cemitério.
Quando diante da temática do cemitério, as reações são diversas, porque apesar de remeter à morte, a efemeridade e aos limites da condição humana, é o lugar do abrigo do fim, é aonde a sociedade guarda a morte.
Inicialmente guarda a morte criando sua tradição, e posteriormente cria uma tradição com formas específicas e regras para guardar a morte (normas de sepultamento).
Abrigar a morte é algo assustador, porque abrigá-la é permitir a sua dinâmica, é constatar a sua vida. É saber que a morte é viva visto que não morre. É complexo, por conferir a consciência da constância do evento.
Torna-se significativo perceber que saber lidar com a morte é abrigá-la de algum modo. Abrigar a morte é aceitar o princípio da realidade culminando em uma postura saudável do sujeito, no seu bem estar psíquico, físico e social de indivíduo íntegro que consegue superar o luto.
O corpo e o cemitério
É função de a área médica emitir o atestado de óbito e assim, o corpo ganha sua documentação final. Tal emissão torna-se insuficiente, é necessário fazer algo com esse corpo, “devolver o pó ao pó”. Cuidando para que ele não seja profanado em nenhum aspecto. Afinal, ele é a parte do ser que jaz sem consciência.
Ora, para aquele que permanece vivo, existe a saudade do falecido, personificada na falta que se sente do corpo. Mas o corpo se deteriora, e sua presença tem que ser então transferida para o lugar onde descansará.
O hábito de visitar cemitérios, bem como o de realizar culto a antepassados livra o familiar que permanece vivo da solidão. Tem um efeito psíquico salubre, por imergir o indivíduo na tradição (por intermédio da arte), reduzindo a sensação de abandono que o sobrevivente sente.
A sociedade pós-moderna que ao buscar inovações nega a tradição, que não tem o hábito de consagrar a sucessão familiar, bem como o hábito de visitar cemitérios faz com que essa mesma sociedade passe a tender a remoer a sensação de abandono natural após o luto, e se torne por conseqüência uma sociedade mórbida com altos índices de doenças psíquicas.
Faz-se importante se considerar o cemitério como lugar que ao acolher o corpo e a tradição, promova a saúde psicossocial dos familiares do defunto. O que é materializado e intensificado pelo hábito de visitar cemitérios.
Cemitério enquanto medida de saúde pública
No decorrer da história da humanidade, grande parte dos problemas de saúde pública relacionou-se com a natureza da vida em comunidade. Abrangendo diversos campos, dentre eles: controle das doenças transmissíveis, o controle e a melhoria do ambiente físico (saneamento), a provisão de água e comida puras, e o alívio da incapacidade e do desamparo. A ênfase sobre cada um desses problemas e situações varia no tempo e na história.
Grosso modo, a medicina social se forma em três etapas: medicina de estado, medicina urbana, medicina da força de trabalho.
A medicina urbana encontra seu exemplo clássico na França, onde a situação dos cemitérios é significativa. “Nasce o cemitério urbano, medo da cidade, angústia diante da cidade que vai se caracterizar por vários elementos: medo das oficinas e fábricas (...); medo, também, das epidemias urbanas, dos cemitérios que se tornam cada vez mais numerosos e invadem pouco a pouco a cidade; (...)” - FOUCAULT.
E continua: “darei o exemplo do ‘cemitério dos inocentes’ que existia no centro de Paris, onde eram jogados, uns sobre os outros, os cadáveres das pessoas que não eram bastante ricas ou notáveis para merecer ou poder pagar um túmulo individual. O amontoado no interior do cemitério era tal que os cadáveres se empilhavam acima do muro do clausto e caíam do lado de fora. Em torno do claustro, onde tinham sido construídas casas, a pressão devido ao amontoamento de cadáveres foi tão grande que as casas se desmoronaram e os esqueletos se espalharam em suas caves provocando pânico e talvez mesmo doença. Em todo caso, no espírito das pessoas da época, a infecção causada pelo cemitério era tão grande que, segundo elas, por causa da proximidade dos mortos, o leite talhava imediatamente, a água apodrecia, (...)” – FOUCAULT.
Assim como agente estimulador de medidas de medicina urbana, existem inúmeros outros exemplos, dentre eles o do Cemitério da Consolação (SP), que por gerar apreensão em relação à saúde através do medo da transmissão de doenças, alterou sua localização.
É difundido o fato dos cemitérios obedecerem a uma ordem sócio-espacial situando-se no fim do perímetro urbano, na periferia, não só para não serem vistos, como é o caso das penitênciárias, mas também para evitar epidemias, assim como no caso dos aterros sanitários.
Sua localização, aliada a suas condições sanitárias denota significativa importância epidemiológica, funcionando também como limite da urbanização, havendo inclusive uma preocupação durante a sua manutenção no que tange a ser um patrimônio público (passível de ser pichado, depredado...). É ainda relevante uma postura de segurança em relação a aqueles que o visitam, para que não funcione como vetor transmissor de doenças, o que ocorre no caso de alguns casais que contraem doenças bacterianas ou mesmo infecciosa ao realizarem práticas sexuais no cemitério.
Na função de promotor da saúde enquanto patrimônios públicos que ao dar lugar aos corpos reduz taxas endêmicas e fatores epidêmicos, o cemitério é, mesmo que de forma aparentemente velada, uma medida de saúde pública desde o seu nascimento, passando pela medicina urbana, até os dias atuais.
Cemitério promovendo conforto espiritual
“Melhor é ir à casa onde há luto do que ir à casa onde há banquete, porque naquela está o fim de todos os homens, e os vivos o aplicam ao seu coração.” – Eclesiastes 7:2
Desde que o humano se conscientizou a respeito da morte, não se sabe o que acontece com a consciência, com a alma, com o espírito daqueles que se foram. Em meio à dúvida, as diversas religiões estruturam inúmeras explicações e hipóteses que não são passíveis de comprovação por seres vivos.
Toda incerteza gera conflito, medo e angústias; E, mesmo com toda linguagem mítica religiosa acerca “das almas que voltaram pra Deus”, a insegurança do que acontece ao ser no pós-morte permanece.
Mas, sendo o cemitério o abrigo do cadáver, da morte, há também de abrigar o sentido espiritual/mítico conferido a aquele que morre. Assim, há um forte elo entre a religião e as tumbas. E, medidas que eram apenas de saúde pública passam a ganhar contornos religiosos que por meio do mito, confere sentido ao rito do enterro.
Além da significância que a religiosidade atribuiu ao sepultamento, o cemitério se faz importante por também acolher a dor e a tristeza de se perder um ente querido.
A sociedade pós-moderna ocidental é a sociedade da Fluoxetina, da primazia do bem-sucedido, que exalta o feliz e a felicidade.
Há uma depreciação com a tristeza, como se esta não fosse permitida. Valoriza-se aquele que sente a perda de forma atenuada.
O que é esquecido, é que um ser humano normal e saudável tem um período de luto, que faz parte do mecanismo de adaptação do sujeito. É natural e até correto diante da morte refletir sobre o que tem sido a vida e sofrer com a perda, com o deparar com o princípio da realidade que tira o humano da ilusão de potência ilimitada. Para quem passa por essa situação natural de encontrar o limite, existe a tristeza.
Assim sendo, muitas pessoas não gostam de visitar cemitérios, considerando o lugar fúnebre e triste. E esse seja talvez o principal motivo que faz com que o brasileiro (o feliz que faz festa e carnaval) tenha o hábito de visitar cemitérios apenas quando está em outros países, a título de cultura geral.
A prova empírica de que a sociedade passa por um momento de negação da tristeza que culmina em culpa (por uma tristeza recalcada) e gera depressão, é que sequer o cemitério pode ser cemitério.
A sociedade da pílula da felicidade nega o sepulcro e a dor da perda e tenta substituí-lo pela alegria do parque. A nomenclatura atual da grande maioria dos cemitérios é parque, que foge tanto a realidade que precisa de complemento nominal para causar a identificação, como por exemplo: “parque da saudade” (...).
A civilização da aparente felicidade roubou dos vivos o direito de chorar seus mortos, de expressar sua dor de forma simbólica nos sepulcros.
E dessa maneira os lutos não se cumprem, e as pessoas deprimidas passeiam em meio a seus parques.
Saber lidar com a morte, não é negá-la, é aceitá-la, abrigá-la com a dor que é intrínseca a ela. É precisar significar o fato de forma mítica, religiosa e artística.
A sociedade que prima a existência como felicidade, tende a negar a tristeza que faz parte da experimentação de ser do ser. E, esconde a tristeza, mas intensifica a angústia, o vazio que ficou no lugar da tristeza não significada e não expressa.
O que fica evidente quando comparamos a foto de dois túmulos.
O primeiro, de um cemitério tradicional municipal.
O segundo o de um cemitério do tipo parque, inaugurado há aproximadamente dois anos. Ambos no mesmo município.
O cemitério é o lugar onde se abriga a morte, e a morte abrigada se compraz em socorrer a vida. Socorrer a vida ao promover a saúde ajudando o humano a lidar com a efemeridade e com suas limitações. E, socorrer a vida de forma holística, pois institui uma forma de lidar com a morte, promove efetivamente a saúde nos âmbitos: corpóreo, psíquico, público e espiritual. Perceptível em cada uma das áreas de modo específico.
Considera-se, portanto que o surgimento e sua perpetuação na história se devem ao fato de ser um agente promotor de saúde em diversos âmbitos e que vem sofrendo conseqüências sociológicas que tem afetado sua funcionalidade em decorrência de mudanças no aspecto estético e físico do mesmo.
Palavras-chave: cemitério, saúde, sociedade.
Abstract
The cemetery is a place where death finds shelter and sheltered death aids life. It does so when it fosters health helping human beings cope with transience and its limitations. It does so when it aids life in an holistic approach, creating a way of dealing with death, fostering health in different aspects: material, psychic, public and spiritual. This is discernible in each one of these areas in a very specific way. It is considered that its creation and permanence along the years in History, is due to the fact that it is a health promoting tool in distinct areas and also that it has been suffering sociological consequences that have affected its performance in relation to changes in its physical and aesthetic aspects.
Key-words: cemetary, health, society.
Introdução
Segundo o dicionário, cemitério é um substantivo masculino que designa o lugar onde se sepultam os cadáveres dos mortos. O termo pode ainda assumir diversas conotações que tendo sentido amplo, pode variar desde “local onde ocorre muita mortandade” incluindo até seu uso para adjetivação de situações, indicando lugar silencioso e desértico, como na expressão “paz de cemitério”.
Na vida prática, assume conotações simbólicas não só no que tange a vivência religiosa, mas no que alcança conceitos como efemeridade e a saudade relacionada ao enterro do corpo, assumindo um caráter coletivo enquanto local público.
Ao avaliar a instituição que é o cemitério em seus diversos aspectos na cultura ocidental, faz com que se levante o questionamento: Por que existem cemitérios?
Considerando-se que o cemitério não é o lugar onde ocorre a morte pode excluir-se a hipótese de que ele existe porque a morte existe. Mesmo porque, nem tudo o que morre será sepultado em um cemitério.
A curiosidade se aguça para saber não só o que cria a necessidade do cemitério, mas também na busca do porquê de sua existência e permanência no decorrer da história da humanidade.
É, portanto, a base ideológica fundante do cemitério que deve ser alcançada.
Por meio da dedução lógica, diante de vasta teoria sobre o tema, fica claramente perceptível que a função medular que sustenta o surgimento e a manutenção dos cemitérios encontra-se no fato de este ser uma medida de salubridade completa.
Uma medida salubre não só no aspecto bioquímico e epidemiológico que possui, mas por ser uma medida de saúde de abrangência holística, alcançando caracteres humanos básicos tais como: saúde mental da população diante do luto do indivíduo, por ser o último cuidado dispendido para com o corpo, por ser relevante quando a disseminação das epidemias, e ainda por ser no âmbito simbólico responsável pela estruturação do ser inserido na história e diante da eternidade, confluindo para a saúde espiritual no campo religioso.
Abrigando a morte
Seguindo a lei da conservação, na natureza nada se cria tudo se transforma. O ciclo vital mostra que a morte existe todo tempo e que se o morrer é constante isso se deve ao fato de que é sucessão da vida, que só porque se renova pode extinguir-se sempre.
Mesmo defrontados com o constante morrer da natureza não houve um só pensador que ousasse defender a idéia de que o mundo é um macro cemitério.
Isso ocorre porque, se o morrer é constante, a morte em si em um fato, um evento que marca o fim do morrer constante das células do metabolismo de um organismo.
Além de ser fato, a morte é um marco, pois cada indivíduo só morre em absoluto e efetivamente uma única vez, e nesse momento sua história está fechada, e os que ficam podem considerá-lo um ser completo que cumpriu a sua função.
Tem-se então o defunto, tal qual na sua conotação etimológica: defunto, do latim defunctus, formada pelo prefixo de, com functus, que é o particípio passivo do verbo fungi (cumprir, acabar, pagar uma divida), vinculado a idéia de “aquele que cumpriu sua função”.
Na sociedade do morrer constante acumula-se história, uma história que culmina em normas e hábitos, que resulta em uma tradição.
É exatamente nesse contexto social que a cultura do cemitério se consolida. É justamente quando surge a necessidade de se abrigar uma tradição permeada de história, crenças e imaginário simbólico que aparece a capacidade de se atribuir a tal abrigo um lugar.
O lugar escolhido é o mesmo que abriga o corpo do que se foi, e as conotações do luto simbólico: o cemitério.
Quando diante da temática do cemitério, as reações são diversas, porque apesar de remeter à morte, a efemeridade e aos limites da condição humana, é o lugar do abrigo do fim, é aonde a sociedade guarda a morte.
Inicialmente guarda a morte criando sua tradição, e posteriormente cria uma tradição com formas específicas e regras para guardar a morte (normas de sepultamento).
Abrigar a morte é algo assustador, porque abrigá-la é permitir a sua dinâmica, é constatar a sua vida. É saber que a morte é viva visto que não morre. É complexo, por conferir a consciência da constância do evento.
Torna-se significativo perceber que saber lidar com a morte é abrigá-la de algum modo. Abrigar a morte é aceitar o princípio da realidade culminando em uma postura saudável do sujeito, no seu bem estar psíquico, físico e social de indivíduo íntegro que consegue superar o luto.
O corpo e o cemitério
É função de a área médica emitir o atestado de óbito e assim, o corpo ganha sua documentação final. Tal emissão torna-se insuficiente, é necessário fazer algo com esse corpo, “devolver o pó ao pó”. Cuidando para que ele não seja profanado em nenhum aspecto. Afinal, ele é a parte do ser que jaz sem consciência.
Ora, para aquele que permanece vivo, existe a saudade do falecido, personificada na falta que se sente do corpo. Mas o corpo se deteriora, e sua presença tem que ser então transferida para o lugar onde descansará.
O hábito de visitar cemitérios, bem como o de realizar culto a antepassados livra o familiar que permanece vivo da solidão. Tem um efeito psíquico salubre, por imergir o indivíduo na tradição (por intermédio da arte), reduzindo a sensação de abandono que o sobrevivente sente.
A sociedade pós-moderna que ao buscar inovações nega a tradição, que não tem o hábito de consagrar a sucessão familiar, bem como o hábito de visitar cemitérios faz com que essa mesma sociedade passe a tender a remoer a sensação de abandono natural após o luto, e se torne por conseqüência uma sociedade mórbida com altos índices de doenças psíquicas.
Faz-se importante se considerar o cemitério como lugar que ao acolher o corpo e a tradição, promova a saúde psicossocial dos familiares do defunto. O que é materializado e intensificado pelo hábito de visitar cemitérios.
Cemitério enquanto medida de saúde pública
No decorrer da história da humanidade, grande parte dos problemas de saúde pública relacionou-se com a natureza da vida em comunidade. Abrangendo diversos campos, dentre eles: controle das doenças transmissíveis, o controle e a melhoria do ambiente físico (saneamento), a provisão de água e comida puras, e o alívio da incapacidade e do desamparo. A ênfase sobre cada um desses problemas e situações varia no tempo e na história.
Grosso modo, a medicina social se forma em três etapas: medicina de estado, medicina urbana, medicina da força de trabalho.
A medicina urbana encontra seu exemplo clássico na França, onde a situação dos cemitérios é significativa. “Nasce o cemitério urbano, medo da cidade, angústia diante da cidade que vai se caracterizar por vários elementos: medo das oficinas e fábricas (...); medo, também, das epidemias urbanas, dos cemitérios que se tornam cada vez mais numerosos e invadem pouco a pouco a cidade; (...)” - FOUCAULT.
E continua: “darei o exemplo do ‘cemitério dos inocentes’ que existia no centro de Paris, onde eram jogados, uns sobre os outros, os cadáveres das pessoas que não eram bastante ricas ou notáveis para merecer ou poder pagar um túmulo individual. O amontoado no interior do cemitério era tal que os cadáveres se empilhavam acima do muro do clausto e caíam do lado de fora. Em torno do claustro, onde tinham sido construídas casas, a pressão devido ao amontoamento de cadáveres foi tão grande que as casas se desmoronaram e os esqueletos se espalharam em suas caves provocando pânico e talvez mesmo doença. Em todo caso, no espírito das pessoas da época, a infecção causada pelo cemitério era tão grande que, segundo elas, por causa da proximidade dos mortos, o leite talhava imediatamente, a água apodrecia, (...)” – FOUCAULT.
Assim como agente estimulador de medidas de medicina urbana, existem inúmeros outros exemplos, dentre eles o do Cemitério da Consolação (SP), que por gerar apreensão em relação à saúde através do medo da transmissão de doenças, alterou sua localização.
É difundido o fato dos cemitérios obedecerem a uma ordem sócio-espacial situando-se no fim do perímetro urbano, na periferia, não só para não serem vistos, como é o caso das penitênciárias, mas também para evitar epidemias, assim como no caso dos aterros sanitários.
Sua localização, aliada a suas condições sanitárias denota significativa importância epidemiológica, funcionando também como limite da urbanização, havendo inclusive uma preocupação durante a sua manutenção no que tange a ser um patrimônio público (passível de ser pichado, depredado...). É ainda relevante uma postura de segurança em relação a aqueles que o visitam, para que não funcione como vetor transmissor de doenças, o que ocorre no caso de alguns casais que contraem doenças bacterianas ou mesmo infecciosa ao realizarem práticas sexuais no cemitério.
Na função de promotor da saúde enquanto patrimônios públicos que ao dar lugar aos corpos reduz taxas endêmicas e fatores epidêmicos, o cemitério é, mesmo que de forma aparentemente velada, uma medida de saúde pública desde o seu nascimento, passando pela medicina urbana, até os dias atuais.
Cemitério promovendo conforto espiritual
“Melhor é ir à casa onde há luto do que ir à casa onde há banquete, porque naquela está o fim de todos os homens, e os vivos o aplicam ao seu coração.” – Eclesiastes 7:2
Desde que o humano se conscientizou a respeito da morte, não se sabe o que acontece com a consciência, com a alma, com o espírito daqueles que se foram. Em meio à dúvida, as diversas religiões estruturam inúmeras explicações e hipóteses que não são passíveis de comprovação por seres vivos.
Toda incerteza gera conflito, medo e angústias; E, mesmo com toda linguagem mítica religiosa acerca “das almas que voltaram pra Deus”, a insegurança do que acontece ao ser no pós-morte permanece.
Mas, sendo o cemitério o abrigo do cadáver, da morte, há também de abrigar o sentido espiritual/mítico conferido a aquele que morre. Assim, há um forte elo entre a religião e as tumbas. E, medidas que eram apenas de saúde pública passam a ganhar contornos religiosos que por meio do mito, confere sentido ao rito do enterro.
Além da significância que a religiosidade atribuiu ao sepultamento, o cemitério se faz importante por também acolher a dor e a tristeza de se perder um ente querido.
A sociedade pós-moderna ocidental é a sociedade da Fluoxetina, da primazia do bem-sucedido, que exalta o feliz e a felicidade.
Há uma depreciação com a tristeza, como se esta não fosse permitida. Valoriza-se aquele que sente a perda de forma atenuada.
O que é esquecido, é que um ser humano normal e saudável tem um período de luto, que faz parte do mecanismo de adaptação do sujeito. É natural e até correto diante da morte refletir sobre o que tem sido a vida e sofrer com a perda, com o deparar com o princípio da realidade que tira o humano da ilusão de potência ilimitada. Para quem passa por essa situação natural de encontrar o limite, existe a tristeza.
Assim sendo, muitas pessoas não gostam de visitar cemitérios, considerando o lugar fúnebre e triste. E esse seja talvez o principal motivo que faz com que o brasileiro (o feliz que faz festa e carnaval) tenha o hábito de visitar cemitérios apenas quando está em outros países, a título de cultura geral.
A prova empírica de que a sociedade passa por um momento de negação da tristeza que culmina em culpa (por uma tristeza recalcada) e gera depressão, é que sequer o cemitério pode ser cemitério.
A sociedade da pílula da felicidade nega o sepulcro e a dor da perda e tenta substituí-lo pela alegria do parque. A nomenclatura atual da grande maioria dos cemitérios é parque, que foge tanto a realidade que precisa de complemento nominal para causar a identificação, como por exemplo: “parque da saudade” (...).
A civilização da aparente felicidade roubou dos vivos o direito de chorar seus mortos, de expressar sua dor de forma simbólica nos sepulcros.
E dessa maneira os lutos não se cumprem, e as pessoas deprimidas passeiam em meio a seus parques.
Saber lidar com a morte, não é negá-la, é aceitá-la, abrigá-la com a dor que é intrínseca a ela. É precisar significar o fato de forma mítica, religiosa e artística.
A sociedade que prima a existência como felicidade, tende a negar a tristeza que faz parte da experimentação de ser do ser. E, esconde a tristeza, mas intensifica a angústia, o vazio que ficou no lugar da tristeza não significada e não expressa.
O que fica evidente quando comparamos a foto de dois túmulos.
O primeiro, de um cemitério tradicional municipal.
O segundo o de um cemitério do tipo parque, inaugurado há aproximadamente dois anos. Ambos no mesmo município.
Os tumulos têm se tornado vazio como a vida mítica e espiritual da civilização, vazios como as almas que negam a tristeza, negando a si mesmas o direito de existir de determinado modo. Túmulo vazio de arte que tem dificultado para que o cemitério efetive sua função simbólica de agente auxiliador do cumprimento do luto, do luto que se cumpre permitindo a saúde.
Afinal, é exatamente quando permite e auxilia o cumprimento do luto e suas expressões míticas, que o cemitério cumpre sua função de promotor da saúde espiritual do ser.
"A grande coragem é, ainda, a de manter os olhos abertos, tanto sobre a luz quanto sobre a morte" – CAMUS.
"A grande coragem é, ainda, a de manter os olhos abertos, tanto sobre a luz quanto sobre a morte" – CAMUS.
Referências
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Almeida Corrigida e Fiel, 1994.
CAMUS, Albert. O avesso e o direito. 2 ed., Rio de Janeiro: Record, 1995.
FOUCAULT, Michel. 1979. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal.
FREUD, S. [1901] A Psicopatologia da Vida Cotidiana. Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1980c, v. 6.
___. [1917] Luto e Melancolia. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980e, v. 14.
PACHECO, A.; SILVA, L.M.; MENDES, J.M.B.; MATOS, B.A. (1999) Resíduos de cemitérios e saúde pública. Revista Limpeza Pública, v. 52. p. 25-27.
PACHECO (2000) Cemitérios e meio ambiente. São Paulo, 102 p. Tese (Livre Docência) - Instituto de Geociências, Universidade de São Paulo
PACHECO, A. (2006). Os cemitérios e o ambiente. Ambientebrasil on line, 2p.PACHECO, A. (2006). Os cemitérios e o ambiente. Revista do CREA - RS, ano III, n. 24, p.30
ROSEN, G. Uma história da saúde pública. São Paulo: UNESP Ed., 1994.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Editora Vozes. Petrópolis, 1997.
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Mayra Lopes de Almeida Reis.
Publicado em: 15/07/2008.
Publicado em: 15/07/2008.
UFG.