quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Cemitério e Medicina

Ao apreciar a imagem acima colocada como plano de fundo da tela do computador o passante comenta que é uma bela escultura e avidamente pergunta de onde provém a foto, pois imagina se tratar decerto uma escultura famosa, afinal sua beleza é deveras encantadora.
Porém, ao saber de onde advém tamanha singeleza há grande estarrecimento, uma vez que se trata da “Alegoria da Saudade” fotografada por Marcelina das Graças de Almeida, no Cemitério do Agramonte na Cidade do Porto.
O estarrecimento, o espantamento tem coerência, pois, vivemos em uma época onde a doença, o envelhecimento e a morte são negados. A efemeridade da existência assombra o humano, e cada um lida com tal fato de uma forma singular. Alguns negam o envelhecimento e se dedicam as dietas, ao exercício físico, rendendo-se à toxina botulínica e as inúmeras cirurgias plásticas tentando lutar contra a finitude. Outros em contrapartida aceitam essa condição da existência tão bem descrita por Hipócrates no famoso aforismo: “A arte é longa, a vida é breve, a experiência enganosa, a oportunidade é fugaz e o julgamento é difícil”.
Independentemente do grupo em que se enquadra o sujeito, a perda, a morte e o cemitério aparecerão em sua vida, mesmo que tardem. Para muitos esse momento aliou-se à paixão pela pesquisa tornando essas pessoas pesquisadoras de cemitérios. Mesmo contando com poucos pesquisadores no Brasil, a pesquisa cemiterial cresce e começa a assumir conotação de ciência no que se refere à publicação e congressos.
A temática abrange inúmeras áreas do saber, dentre elas a teologia, a história, a arte, a economia, a sociologia, a medicina...
Quando se menciona a medicina muitos sequer conseguem fazer uma possível relação. Sendo assim, faz-se necessário elucidar tal aspecto. E, para tal, faz-se uso das publicações: “Onde a morte socorre a vida”, “Lápide e memória” e “Luto Roubado”.
No artigo “Onde a morte socorre a vida” o cemitério é tido como o lugar onde se abriga a morte, e a morte abrigada se compraz em socorrer a vida. Socorrer a vida ao promover a saúde ajudando o humano a lidar com a efemeridade e com suas limitações. E, socorrer a vida de forma holística, pois institui uma forma de lidar com a morte por promover efetivamente a saúde nos âmbitos: corpóreo, psíquico, público e espiritual. No âmbito corpóreo devido ao fato de o cemitério ser o último cuidado destinado ao corpo. No âmbito psíquico por permitir ao indivíduo a elaboração do processo de luto. No âmbito público por se tratar de uma medida de saúde pública evitando epidemias. No âmbito espiritual propiciando o mito, o rito e a simbolização da morte. Considera-se, portanto que o surgimento do cemitério e sua perpetuação na história se devem ao fato de ser um agente promotor de saúde em diversos âmbitos.
No intitulado “Lápide e memória” existe um novo modelo para a educação médica ao associar lápides com neurociência, pois elucida o processo evolutivo neuronal por meio do exemplo da lápide e de suas funções no decorrer da história. Não há quem questione o fato de a memória possuir uma importante posição na sociedade atual, não só por consolidar o conhecimento, mas também por fornecer ao indivíduo evocações de fatos que faz com que ele consolide sua história e delimite seus hábitos.
Há aspectos importantes no mecanismo da memória e no seu desenvolvimento e ampliação no decorrer da história. Um marco no senso de existência e busca por historicidade evidencia-se com o surgimento da lápide completada pelo epitáfio. A lápide assume uma conotação não apenas de construção, mas também simbólica sendo uma evidência da evolução do SNC e no uso atribuído aos centros neuronais, que por necessidade afetiva e social se desenvolvem e culminam em outros progressos para a humanidade.
No terceiro artigo: “Luto Roubado” estuda-se as interferências do modelo estético cemiterial em relação ao processo de luto, considerando que além da função de agente promotor da saúde pública no campo biológico, o cemitério possui conotações simbólicas que lhe conferem a capacidade de promover saúde psíquica, pois, por meio dos ritos e da estrutura física do local o sujeito que perdeu um ente, simboliza sua perda, permitindo o processo fisiológico de luto. O que impossibilita a instalação de algumas psicopatologias decorrentes de um luto não cumprido devidamente.
Descreve a mudança da estrutura física do cemitério para o modelo de parque constatando que tal modelo altera o processo de luto natural, pois ao negar a dor da perda por meio da supressão de elementos simbólicos gera no sujeito culpa por ser impotente diante da morte aumentando a propensão para a depressão.
Segundo Marcelina de Almeida: “E assim os cemitérios refletem esta nova sensibilidade no tratamento das questões que envolvem a morte: o culto aos mortos, a evocação da memória, a eternidade. O desejo de imortalidade é traduzido através da construção de marcos de memória, as sepulturas revelam-se como um sonho de perenidade”.
Na antiguidade os médicos eram curandeiros, bruxos, sábios que se ocupavam das áreas do saber relacionadas à existência. Hoje com a supervalorização da especialização o profissional torna-se a cada dia mais fragilizado no que tange à consolidação da cultura do indivíduo fato que certamente influencia na prática clínica, no trato com o doente, no trato com o outro. E se o ato médico ainda não foi definido uma das causas se relaciona a dificuldade de delimitar o que é cuidar do outro. Onde existe o outro, existe uma história, a memória dessa história, uma história singular que constrói a história da humanidade. Nas palavras de Pierre de Bouchard: L’histoire de l’humanité peut s’ecrire á l’aide des seuls tombeaux.

Mayra Lopes de Almeida Reis.

Publicado em 20/10/2008

http://www.aisi.edu.br/he/index.asp?p=artigos&codigo=840

Um comentário:

  1. Sempre percebí através de seus textos, de sua inteligência e garra que você iria longe...muito longe...
    Parabéns garota!
    Jamais fuja de seus ideais.
    Me orgulho de, um dia ter sido sua professora!

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