A memória possui uma importante posição na sociedade atual, não só por consolidar o conhecimento, mas também por fornecer ao indivíduo evocações de fatos que faz com que ele consolide sua história e evoque seus hábitos.
Há aspectos importantes no mecanismo da memória e no seu desenvolvimento e ampliação no decorrer da história. Um marco no senso de existência e busca por historicidade evidencia-se com o surgimento da lápide completada pelo epitáfio. A lápide assume uma conotação não apenas de construção, mas também simbólica sendo uma evidência da evolução do SNC e no uso atribuído aos centros neuronais, que por necessidade afetiva e social se desenvolvem e culminam em outros progressos para a humanidade.
Palavras-chave: lápide, memória, existência.
Memory plays an important part in today’s society, not only because it helps consolidate knowledge but also for reminding men of facts, so that he becomes apt to remember his habits.
There are important aspects in the mechanism of the memory, its development and expansion. It’s a keystone in the sense of existence and the search for historical background shows it ale began with a tombstone engraved with the last words about the deceased. The tombstone thus becomes not just something built but a symbol, and it’s the evidence of an evolution of the CNS and of the use of neural centers which develop, because of emotional and social need, ending in other types of progress for mankind.
Key-words: tombstone, memory, existence.
Introdução
Memória é a capacidade de reter, recuperar, guardar e evocar informações. A memória humana se consolida, ao focar em objetos determinados e por requerer grande quantidade de energia, tende a se deteriorar com o passar do tempo.
Para deter tal deterioração o ser humano criou, no decorrer das eras, para facilitar a evolução, mecanismos que visam manter a memória para dessa forma consolidar a história e tornar a vida facilitada por intermédio da tradição.
A tradição que é expressa por meio da arte, que pode ser encontrada em todos os lugares, inclusive nos cemitérios e nas lápides que evocam a memória e funcionam como indicativo implícito do contexto da saúde de uma época, de seus medos e de suas esperanças, da existência de uma vida que jaz em corpo, mas que se insere na história. Aponta ainda para a evidência de que o sistema neuronal adapta os homens ao ambiente nos diversos âmbitos, dentre eles o físico, o social e o afetivo. Serve como indicativo significativo de que a memória precisa de estímulo para se conservar, uma vez que consiste em uma capacidade de atualizar informações necessárias a manutenção da vida. Conhecimento empírico tão antigo quanto às lápides que só recentemente tem sido sistematizado e estudado pela neurociência que deve usar as lápides como prova empírico-histórica para consolidação de suas teorias acerca da memória.
Lápide
Lápide, o mesmo que lápida ou ainda lousa tumular, é um substântivo feminino que no passado já foi indicativo de pedra comemorativa de um fato notável, que com o decorrer da história, passou a celebrar a memória de alguém, uma vez que uma vida que se finda é uma existência que se torna completa, um feito considerável por sua completude.
Apesar de atribuirmos sua construção ao século XIV, como uma medida para axiliar na duração das obras, existem inúmeros relatos acerca de sua existência que precedem e muito a tal data. Geralmente os relatos estão associados a textos literários ou históricos, pois a conservação que visava superar a efemeridade encontra-se em sua maioria em cemitérios, igrejas, e outros locais, sendo atualmente encontradas inclusive em museus.
Um dos textos mais conhecidos que ilustra a historicidade da lápide é: “Jesus, pois, movendo-se outra vez muito em si mesmo, veio ao sepulcro; e era uma caverna, e tinha uma pedra posta sobre ela.” – Jo 11,38.
A pedra pode ser, portanto, considerada como precursora de toda e qualquer lápide, por possuir atributos físicos que vão desde proteção e marcação do lugar onde o corpo deita-se para o sono eterno, até inclusive atributos simbólicos devido a sua lenta deterioração física, conferindo ao imaginário humano a idéia de que não é efêmera, ou, ao menos, não tão efêmera quanto à vida humana.
“Os antigos germânicos, por exemplo, acreditavam que os espíritos dos mortos continuavam a existir nas lápides dos seus túmulos. O costume de colocar pedras sobre os túmulos deve ter surgido da idéia simbólica de que algo eterno do morto subsiste, e encontra nas pedras a sua representação mais adequada.” – Jung
Inclusive devido a tal analogia pode se estruturar uma relação simbólica entre a pedra e o ser. “Já mencionamos o fato de que o self é simbolizado, com muita freqüência, na forma de uma pedra, preciosa ou de outro tipo qualquer.” - Jung
As funções física e simbólica da lápide são brilhantemente citadas:
“Descansem o meu leito solitárioNa floresta dos homens esquecida,À sombra de uma cruz, e escrevam nela:Foi poeta - sonhou - e amou na vida.
Sombras do vale, noites da montanhaQue minha alma cantou e amava tanto,Protegei o meu corpo abandonado,E no silêncio derramai-lhe canto!
Mas quando preludia ave d’auroraE quando à meia-noite o céu repousa,Arvoredos do bosque, abri os ramos...Deixai a lua pratear-me a lousa!” - (Álvares de Azevedo)
Na estrofe inicial, o poeta menciona o esquecimento que vem com a morte, e o desejo de eternizar-se no tempo por meio do seu ofício, contribuição para o mundo, através do que simbolizou a sua existência.
Na segunda, menciona a função de protetora e delimitadora de onde o corpo jaz necessitando de abrigo, acolhimento.
Na terceira, pede para a natureza abrir-se de forma que permita ao luar iluminar a lápide, ora, se ilumina algo para que seja visto. E o que é visto é imediatamente lembrado, evocado porque existe de certo modo na memória.
Tal memória é indicativa da evolução neurológica humana que começa a colocar-se além da memória de procedimento, que é ligada a capacidade de reter e processar informações que podem ser realizadas como andar, por exemplo; Atingindo a memória declarativa que consiste na capacidade de verbalizar um fato, podendo ser imediata ao tratar de fatos muito recentes que são rapidamente esquecidos sem deixar traços, ou mesmo, das memórias de curto ou longo prazo.
A memória de curto prazo forma traços de memória e possui a duração de algumas horas, podendo ou não ser consolidada. Se consolidada, pode durar meses e anos sendo chamada de memória de longo prazo. A memória de longo prazo envolve a capacidade de aprendizagem e assume suma importância para a evolução de uma tradição de cultura universal por meio do conhecimento alcançado por gerações ancestrais e acionado por gerações futuras de seres também inseridos no tempo.
A lápide enquanto forma material para evocação da memória funciona inclusive como auxiliadora da memória que é base do conhecimento e deve ser trabalhada e estimulada, pois é por meio das experiências cotidianas transmitidas que se atribui significação ao sentido da existência humana. Enquanto ser social, de importância histórica, a lápide tenderá a referir-se ao ofício que dignificou o ser por ela eternizado, evocado, lembrado se tornando um verdadeiro livro de vidas, pois foi completa com um texto, o epitáfio.
Epitáfio
Epitáfio é uma palavra de origem grega, ἐπιτάφιος que significa “sobre a tumba”. Etimologicamente, prefixo epi que designa posição superior acrescido do radical tafos que significa túmulo. São, portanto, frases escritas sobre os túmulos, homenageando a pessoa ali sepultada, geralmente escrito em placa ou pedra.
A composição musical mais antiga e completa do mundo ocidental (letra e melodia) de que se tem notícia é o epitáfio de Seikilos. A melodia foi encontrada gravada em grego em uma lápide perto de Aidin na Turquia (próximo de Éfeso). Com o seguinte texto:
GREGO (transliterado):
Hoson zes, phainou
Meden holos su lupou
Pros oligon esti to zen
To telos ho chronos apaitei
PORTUGUÊS:
Enquanto viveres, brilha
Não sofras nenhum mal
A vida é curta
E o tempo cobra suas dívidas
Além da composição presumivelmente feita para a esposa de Seikilos enterrada no local, há ainda a inscrição: “Eu sou um túmulo, um ícone. Seikilos me pôs aqui como um símbolo eterno da lembrança imortal.”
Expressões como “lembrança imortal” servem como indícios do uso de determinadas áreas cerebrais sempre associadas ao aspecto emocional e de linguagem. Desde meados do século XX questiona-se se as funções de memória são localizadas em regiões cerebrais específicas havendo dúvidas quanto a sua possível relação com linguagem e percepção, ou se seria apenas uma função distinta da atenção.
Ora, considerando-se as evidências históricas presente nas lápides, percebe-se que essa função, mesmo que centralizada não encontra-se só. Em 1861 Broca demonstrou que lesões restritas à parte superior do lobo frontal esquerdo (área de broca) causavam um defeito específico na linguegem afetando também a memória. Penfield foi o primeiro a mostrar que os processos de memória encontram-se associados a locais específicos no cérebro humano verificando que estimulação elétrica produz resposta experiencial ou retrospecção em que o paciente era capaz de descrever uma lembrança ou experiência vivida.
A lápide, também no decorrer da história funciona como um estímulo para a memória mas efetuada por meio de outras vias neuronais mais corticais relacionadas à linguagem, principalmente quando existe a presença do epitáfio. E a questão da memória que é tão atual no que tange ao afinco científico da neurociência e da psicologia, impera de forma prática por muito tempo nas lápides pelos cemitérios mundo afora.
Lápide na História
A lápide está na história e sofre interferência por meio da mesma. Protege a memória e sofre interferência por intermédio das memórias. No século XIV com a presença da peste negra ouve uma devastação de vidas humanas, devastação que só se reduziu a partir de 1350 embora a doença permanecesse no continente europeu de forma endêmica até por volta do século XVIII. As seqüelas deixadas pela peste foram permanentes, alterando a relação das pessoas, abalando a infalibilidade do clero, ampliando o misticismo e reforçando a fé pessoal. Na arte transformou-se a forma com que a morte era representada, mais assustadora agora, levando em seus braços falecidos descarnados e torturados, testemunha permanente da imensa cicatriz psíquica social provocada pela peste negra.
E, como toda cicatriz psíquica precisa de uma resimbolização para conferir sentido a dor sentida, gerando esperança e possibilitando a continuidade da vida. Curiosamente, encontra-se nos livros de história o arquiteto Jackson como o primeiro a projetar a primeira lápide em 1366.
A lápide vem, portanto, eternizar o homem efêmero e vencer a dor causada pelas perdas ocasionadas pela peste.
A lápide pode funcionar inclusive como única via da herança deixada sobre a face da terra pelos homens diante da morte, como tão bem ilustrada na lápide que não existiu na obra Memórias Póstumas de Brás Cubas: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”–MACHADO DE ASSIS.
Sendo assim a lápide assume na história uma função de narrar a memória social da humanidade. O que pode ser ilustrado por algumas lápides famosas, como por exemplo:
“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”. – Machado de Assis
“Passant, ne pleure pas ma mort (Passante, não chores minha morte)Si je vivais tu serais mort. (Se eu vivesse tu estarias morto)” - Robespierre
“Δεν ελπίζω τίποτα. Δεν φοβούμαι τίποτα. Είμαι ελεύθερος ("Não espero nada. Não temo nada. Sou livre").” - Níkos Kazantzákis
“É uma honra para o gênero humano que tal homem tenha existido." - Newton
"Considero minhas obras como cartas que escrevi à posteridade sem esperar resposta". - Villa-Lobos
"Assassinado por imbecis de ambos os sexos". - Nelson Rodrigues
Há ainda casos atípicos como o da família de Tancredo Neves que mudou o epitáfio desejado pelo mesmo, que era o seguinte: "Aqui jaz, muito a contragosto, Tancredo de Almeida Neves".
Epitáfio e Sociedade
O epitáfio acabou por se tornar algo importante sob a perspectiva social, e também se tornou forma de expressar a ironia. Mas, sem perder a sua função típica de expor de forma resumida o sentido da vida do sujeito, evocar uma memória. Ao que pode ser ilustrado pelo seguinte texto que caminha pelo correio eletrônico sem referencia de autor, mas que sem dúvida é uma expressão da relação do senso comum com a arte da lápide em uma crítica social.
Profissão / Lápide
Agrônomo - Favor regar o solo com Neguvon. Evita vermes.
Alcoólatra - Enfim, sóbrio.
Arqueólogo - Enfim, fóssil.
Assistente social - Alguém aí, me ajude!
Broter - Fui.
Cartunista - Partiu sem deixar traços.
Delegado - Ta olhando o que? Circulando, circulando.
Ecologista - Entrei em extinção.
Espírita - Volto já.
Funcionário público - É no túmulo ao lado.
Gay - Virei purpurina.
Herói - Corri para o lado errado.
Hipocondríaco - Eu não disse que estava doente?
Humorista - Isso não tem a menor graça.
Jangadeiro diabético - Foi doce morrer no mar.
Judeu - O que vocês estão fazendo aqui? Quem está tomando conta da lojinha?
Pessimista - Aposto que está fazendo o maior frio no inferno.
Psicanalista - A eternidade não passa de um complexo de superioridade mal resolvido.
Sanitarista - Sujou!
Viciado - Enfim, pó.
Lápide do Indigente
Ao falarmos da função de memória social para as lápides, fica incógnita a função da mesma para aqueles que por vezes sequer têem túmulos, os indigentes.
Mas, mesmo o indigente que faz algo pela humanidade, apesar de não possuir uma tumba clássica, recebe uma espécie de lápide nos centros anatômicos, pois antes da sala das cubas há sempre uma placa que é sem sobra de dúvidas, uma lápide simbólica. Mostrando que a lembrança e a gratidão funcionam como companheiras na construção da história e na consolidação da memória daqueles que antecederam a geração contemporânea na caminhada humana sobre a Terra.
A lápide atualiza, portanto, aspectos de uma memória que se inicia no singular e que vai até o universal, uma vez que retrata a forma de lidar com uma condição humana universal: a inserção do humano no tempo.
Referências
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SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Editora Vozes. Petrópolis, 1997.
UFG.