quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Considerações acerca da obra: “A curva e o caminho”

"Uma curva de caminho, anônima, torna-se as vezes 
a maior recordação de toda volta ao mundo."
Mário Quintana


A obra intitulada “A curva e o caminho – Acesso à Saúde no Brasil” foi idealizada e realizada por Andre François, paulista, nascido em 1966, atualmente considerado fotografo documentarista.
            Andre François registrou imagens de diversos países, mas, sua grande superação pessoal foi enveredar-se pelo mundo da fotografia, uma alternativa mediante sua dislexia. Seu primeiro trabalho foi em São Tomé das Letras retratando a vida dos trabalhadores das pedreiras em 1992. Em 1995 criou a organização ImageMagica cujo objetivo é transformar a vida das pessoas por meio da fotografia, de modo a promover a saúde e a qualidade de vida no mundo.
            A ImageMagica é a editora da obra, e, possui nove projetos, sendo eles: 1. Expedicionários da Saúde; 2. Projeto vida – um documentário sobre a saúde no mundo; 3. Fortes mulheres – documentário feito com mulheres baseado na pergunta “O que é superação para você?”; 4. De volta para casa – documentário sobre o tratamento domiciliar no Brasil; 5. Escolher e viver – acerca do tratamento e qualidade de vida dos pacientes renais crônicos; 6. A curva e o caminho – relacionado ao acesso à saúde no Brasil; 7. Cuidar – documentário sobre a medicina humanizada no Brasil; 8. Saúde e cultura – programa que inclui fotografia no atendimento médico; 9. Escola do olhar – que ensina fotografia a crianças.
            Todas as iniciativas citadas tiveram como marco inicial significativo o documentário: “Medicina Humanizada” (2006), disponível para ser baixado gratuitamente na página da ImageMagica.
            Já a obra “A curva e o caminho”, datada de 2008, disponível em português e em inglês, identificada no setor editorial como um livro de fotografia, possui custo que varia de 54 a 65 reais em sites de venda.
            A obra possui vinte capítulos com relatos, fatos e belas citações. Os capítulos são intitulados: No meio do caminho tinha uma pedra e muitas mãos estendidas; êxodo e despedida; na rota das ambulanchas; encruzilhadas na selva; vidas novas; na estrada, a espera; “tem que ser do mineiro o que Deus quiser”; socorro; “fui atrás da vida do meu filho”; direito de todos; um batalhão de contaminados; “a doença arrancou o curso da minha vida”; acesso: definições e questões; enquanto o diagnóstico não vem; duas ligações, uma vida; preconceito também é doença; recomeçar depois do HIV; comida caseira e portas abertas; voltar à redenção; enfrentar e vencer; E, é dedicada “aos que morreram e sobreviveram no caminho.”
            O autor defende que “Perceber o mundo em que se vive é o primeiro passo para modificá-lo.” Pois, conforme descrito na página 37: “Tem coisas que a gente só percebe quando se aproxima”. (François, 2008, pg.37) E, durante toda obra, os fatos funcionam como um convite a aproximar-se da realidade médica do interior do país.
            Tal aproximação com a realidade elucida questões profundas como a negligencia de cuidados por parte dos familiares que expõem suas angústias diante da falta de recursos: “Um médico chegou a dizer que ia me chamar no fórum porque eu não estava dando atenção para o menino, mas (...) se eu tivesse carro, se eu tivesse dinheiro (...), eu ia, corria atrás.” (François, 2008, pg.118-119)
            Denotando explicitamente a falta de recurso e a dificuldade de transporte: “Toda vez que ele vai lá, fazer consulta de rotina, tem que ser internado, porque o negócio está muito avançado. Mas eu trago ele quando ele ta assim porque não consigo trazer antes (...)”. (François, 2008, pg.119)
            Demonstra as complicações para conseguir acesso à medicação: “Os remédios dele faço assim: às vezes o padrinho dele dá; quando tenho dinheiro, eu compro, quando ele tem dinheiro, ele compra, quando a irmã tem dinheiro, compra, e assim a gente vai se virando.” (François, 2008, pg.119)
            E aprofunda ao relatar ainda as dificuldades para receber a medicação fornecida pelo sistema público: “Sabe, eu preciso no mínimo de um ano de tratamento, eles me dão pra trinta dias. E sou obrigado a ir até a capital, e o medicamento, para começar é tão forte, que não convém dirigir.” (...) “E os medicamentos, se eu não tomá-los conjugados, é a mesma coisa que não tomar.” (François, 2008, pg.127)
            Além da avaliação de intercorrencias devido à disponibilidade de recursos materiais, a obra aborda questões de ordem filosófica, como o cuidado final com o corpo e suas partes. Como descrito no trecho: “ ‘Acabamos assim: um pedaço de carne em uma garrafa pet, descartável’, afirmou a técnica do laboratório.” (François, 2008, pg.152).
            A obra denuncia as falhas na saúde preventiva, mostrando a incidência de inúmeras patologias em um mesmo indivíduo: “Terezinha já enfrentou uma malária e uma hepatite C. A assistente acredita que esta batalha será outra: o câncer espalhou-se, e tudo indica que a cura fica mais distante a cada dia.” (François, 2008, pg.152)
            Há ainda condições abordadas que são comuns a pacientes do interior e dos grandes centros, e de todos os que conferem confiança significativa na ciência e na medicina, que é tão falha e vulnerável quanto a própria existência humana, conforme comprovado na sentença: “Mesmo com o tratamento, vou ter que tirar o seio?!” (François, 2008, pg.153)
            Mesmo evidenciando as discrepâncias do acesso à saúde, a obra trata do sofrimento que é algo comum a todos aqueles que são portadores de patologias limitantes, independente do acesso ao serviço de saúde. Um sofrimento que implica na mudança da rotina, na impossibilidade de trabalhar e contribuir para com a sociedade, e a sensação de menos valia resultante de tais condições. O relato que evidencia a impossibilidade de trabalhar é simples e profundo: “Terezinha conta que acordou com vontade de lavar roupa, sabe que o esforço provoca dores nos braços e seios, mas tem vontade de fazer alguma atividade. (François, 2008, pg.153)
            O aspecto da solidariedade é muito claro na obra: “A família está mobilizada para ajudá-la.” (François, 2008, pg.153) Mas, mesmo perante a perspectiva da ajuda o diagnostico tem caráter de sentença: “Sou a segunda pessoa aqui na minha área que tem esta doença. A outra morreu.” (François, 2008, pg.157)
            Em toda obra há a presença linear da morte e do medo da mesma, e, sempre com forte mensagem de esperança e perspectiva otimista: “Uma cruz em frente a um montinho de terra. Uma sepultura rasa. Sônia reza um Pai-Nosso. Nós precisamos seguir.” (François, 2008, pg.197)
            Uma história interessante que aborda a questão médico-paciente é a de Antônio que se encontra no capítulo: “Enfrentar e vencer”, que se assemelha a um resumo do percurso de muitos indivíduos no sistema de saúde vigente: “Ai ele desmaiava, tinha febre, vomitava muito. Passei 8 meses levando ele num médico do interior e o médico só passava remédio para verme. Quando ele já não andava mais, o médico colocou ele para Rio Branco. Lá, a doutora Kely fez tomografia computadorizada e o tumor estava grande.” (François, 2008, pg.201)
            Diante das dificuldades diagnosticas e terapêuticas, a relação médico-paciente fica comprometida, fator que associado ao desconhecimento das práticas médicas por parte dos pacientes implicam em uma análise errônea sobre a responsabilidade e efetividade do ato médico. Muitos pacientes não confiam em seus médicos, uma desconfiança decorrente de sua condição socioeconômica cultural insuficiente, conforme denotado no trecho: “ ‘Esse médico é acostumado a fazer cirurgia?’ Eu imaginava que porque eles sabiam que eu vinha de longe, eles colocavam uma pessoa que não sabe, para aprender nele.” (François, 2008, pg.201) Pois, o sujeito desconhece a formação necessária para a prática da medicina; Bem como os aspectos éticos e legais para o exercício da profissão. Afinal, não se exerce a arte da cirurgia sem o domínio da técnica. Boa parte dos profissionais se dedica ao justo exercício da medicina aliviando o sofrimento que conseguem, na certeza de que quem assiste uma vida diminui o sofrimento no mundo.
            Após a leitura e análise da obra conclui-se que o autor atingiu seu objetivo com seu livro de fotografia: educar o olhar e o pensar por intermédio das imagens.

Referência:

FRANÇOIS A. A curva e o caminho – acesso à saúde no Brasil. São Paulo: Image Magica, 2008.

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