"Uma curva de caminho, anônima, torna-se as vezes
a maior recordação de toda volta ao mundo."
Mário Quintana
A obra
intitulada “A curva e o caminho – Acesso à Saúde no Brasil” foi idealizada e
realizada por Andre François, paulista, nascido em 1966, atualmente considerado
fotografo documentarista.
Andre
François registrou imagens de diversos países, mas, sua grande superação
pessoal foi enveredar-se pelo mundo da fotografia, uma alternativa mediante sua
dislexia. Seu primeiro trabalho foi em São Tomé das Letras retratando a vida
dos trabalhadores das pedreiras em 1992. Em 1995 criou a organização
ImageMagica cujo objetivo é transformar a vida das pessoas por meio da
fotografia, de modo a promover a saúde e a qualidade de vida no mundo.
A
ImageMagica é a editora da obra, e, possui nove projetos, sendo eles: 1.
Expedicionários da Saúde; 2. Projeto vida – um documentário sobre a saúde no
mundo; 3. Fortes mulheres – documentário feito com mulheres baseado na pergunta
“O que é superação para você?”; 4. De volta para casa – documentário sobre o
tratamento domiciliar no Brasil; 5. Escolher e viver – acerca do tratamento e
qualidade de vida dos pacientes renais crônicos; 6. A curva e o caminho –
relacionado ao acesso à saúde no Brasil; 7. Cuidar – documentário sobre a
medicina humanizada no Brasil; 8. Saúde e cultura – programa que inclui
fotografia no atendimento médico; 9. Escola do olhar – que ensina fotografia a
crianças.
Todas
as iniciativas citadas tiveram como marco inicial significativo o documentário:
“Medicina Humanizada” (2006), disponível para ser baixado gratuitamente na
página da ImageMagica.
Já
a obra “A curva e o caminho”, datada de 2008, disponível em português e em
inglês, identificada no setor editorial como um livro de fotografia, possui
custo que varia de 54 a 65 reais em sites de venda.
A
obra possui vinte capítulos com relatos, fatos e belas citações. Os capítulos
são intitulados: No meio do caminho tinha uma pedra e muitas mãos estendidas;
êxodo e despedida; na rota das ambulanchas; encruzilhadas na selva; vidas
novas; na estrada, a espera; “tem que ser do mineiro o que Deus quiser”;
socorro; “fui atrás da vida do meu filho”; direito de todos; um batalhão de
contaminados; “a doença arrancou o curso da minha vida”; acesso: definições e
questões; enquanto o diagnóstico não vem; duas ligações, uma vida; preconceito
também é doença; recomeçar depois do HIV; comida caseira e portas abertas;
voltar à redenção; enfrentar e vencer; E, é dedicada “aos que morreram e
sobreviveram no caminho.”
O
autor defende que “Perceber o mundo em que se vive é o primeiro passo para
modificá-lo.” Pois, conforme descrito na página 37: “Tem coisas que a gente só
percebe quando se aproxima”. (François, 2008, pg.37) E, durante toda obra, os
fatos funcionam como um convite a aproximar-se da realidade médica do interior
do país.
Tal
aproximação com a realidade elucida questões profundas como a negligencia de
cuidados por parte dos familiares que expõem suas angústias diante da falta de
recursos: “Um médico chegou a dizer que ia me chamar no fórum porque eu não
estava dando atenção para o menino, mas (...) se eu tivesse carro, se eu
tivesse dinheiro (...), eu ia, corria atrás.” (François, 2008, pg.118-119)
Denotando
explicitamente a falta de recurso e a dificuldade de transporte: “Toda vez que
ele vai lá, fazer consulta de rotina, tem que ser internado, porque o negócio
está muito avançado. Mas eu trago ele quando ele ta assim porque não consigo
trazer antes (...)”. (François, 2008, pg.119)
Demonstra
as complicações para conseguir acesso à medicação: “Os remédios dele faço
assim: às vezes o padrinho dele dá; quando tenho dinheiro, eu compro, quando
ele tem dinheiro, ele compra, quando a irmã tem dinheiro, compra, e assim a
gente vai se virando.” (François, 2008, pg.119)
E
aprofunda ao relatar ainda as dificuldades para receber a medicação fornecida
pelo sistema público: “Sabe, eu preciso no mínimo de um ano de tratamento, eles
me dão pra trinta dias. E sou obrigado a ir até a capital, e o medicamento,
para começar é tão forte, que não convém dirigir.” (...) “E os medicamentos, se
eu não tomá-los conjugados, é a mesma coisa que não tomar.” (François, 2008,
pg.127)
Além
da avaliação de intercorrencias devido à disponibilidade de recursos materiais,
a obra aborda questões de ordem filosófica, como o cuidado final com o corpo e
suas partes. Como descrito no trecho: “ ‘Acabamos assim: um pedaço de carne em
uma garrafa pet, descartável’, afirmou a técnica do laboratório.” (François,
2008, pg.152).
A
obra denuncia as falhas na saúde preventiva, mostrando a incidência de inúmeras
patologias em um mesmo indivíduo: “Terezinha já enfrentou uma malária e uma
hepatite C. A assistente acredita que esta batalha será outra: o câncer espalhou-se,
e tudo indica que a cura fica mais distante a cada dia.” (François, 2008,
pg.152)
Há
ainda condições abordadas que são comuns a pacientes do interior e dos grandes
centros, e de todos os que conferem confiança significativa na ciência e na
medicina, que é tão falha e vulnerável quanto a própria existência humana,
conforme comprovado na sentença: “Mesmo com o tratamento, vou ter que tirar o
seio?!” (François, 2008, pg.153)
Mesmo
evidenciando as discrepâncias do acesso à saúde, a obra trata do sofrimento que
é algo comum a todos aqueles que são portadores de patologias limitantes,
independente do acesso ao serviço de saúde. Um sofrimento que implica na
mudança da rotina, na impossibilidade de trabalhar e contribuir para com a
sociedade, e a sensação de menos valia resultante de tais condições. O relato
que evidencia a impossibilidade de trabalhar é simples e profundo: “Terezinha
conta que acordou com vontade de lavar roupa, sabe que o esforço provoca dores
nos braços e seios, mas tem vontade de fazer alguma atividade. (François, 2008,
pg.153)
O
aspecto da solidariedade é muito claro na obra: “A família está mobilizada para
ajudá-la.” (François, 2008, pg.153) Mas, mesmo perante a perspectiva da ajuda o
diagnostico tem caráter de sentença: “Sou a segunda pessoa aqui na minha área
que tem esta doença. A outra morreu.” (François, 2008, pg.157)
Em
toda obra há a presença linear da morte e do medo da mesma, e, sempre com forte
mensagem de esperança e perspectiva otimista: “Uma cruz em frente a um montinho
de terra. Uma sepultura rasa. Sônia reza um Pai-Nosso. Nós precisamos seguir.”
(François, 2008, pg.197)
Uma
história interessante que aborda a questão médico-paciente é a de Antônio que
se encontra no capítulo: “Enfrentar e vencer”, que se assemelha a um resumo do
percurso de muitos indivíduos no sistema de saúde vigente: “Ai ele desmaiava,
tinha febre, vomitava muito. Passei 8 meses levando ele num médico do interior
e o médico só passava remédio para verme. Quando ele já não andava mais, o
médico colocou ele para Rio Branco. Lá, a doutora Kely fez tomografia
computadorizada e o tumor estava grande.” (François, 2008, pg.201)
Diante
das dificuldades diagnosticas e terapêuticas, a relação médico-paciente fica
comprometida, fator que associado ao desconhecimento das práticas médicas por
parte dos pacientes implicam em uma análise errônea sobre a responsabilidade e
efetividade do ato médico. Muitos pacientes não confiam em seus médicos, uma
desconfiança decorrente de sua condição socioeconômica cultural insuficiente,
conforme denotado no trecho: “ ‘Esse médico é acostumado a fazer cirurgia?’ Eu
imaginava que porque eles sabiam que eu vinha de longe, eles colocavam uma
pessoa que não sabe, para aprender nele.” (François, 2008, pg.201) Pois, o
sujeito desconhece a formação necessária para a prática da medicina; Bem como
os aspectos éticos e legais para o exercício da profissão. Afinal, não se
exerce a arte da cirurgia sem o domínio da técnica. Boa parte dos profissionais
se dedica ao justo exercício da medicina aliviando o sofrimento que conseguem,
na certeza de que quem assiste uma vida diminui o sofrimento no mundo.
Após
a leitura e análise da obra conclui-se que o autor atingiu seu objetivo com seu
livro de fotografia: educar o olhar e o pensar por intermédio das imagens.
Referência:
FRANÇOIS A. A curva e o caminho –
acesso à saúde no Brasil. São Paulo: Image Magica, 2008.
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